10 de dezembro Diário Incontínuo
UM OLHAR SOBRE
ESPERANTINA
Elmar Carvalho
No sábado passado, dia
6, recebi das mãos de seu autor, o professor, pesquisador e escritor Assis
Fortes, o livro Um olhar sobre Esperantina, sua terra natal. A capa ostenta uma
bela fotografia panorâmica da urbe, feita por Isael Lustosa de Castro, através
da qual se denota o seu progresso. Vê-se, ao longe, uma nesga do rio Longá,
aparentemente com suas matas ciliares ainda preservadas, ao menos na região
retratada.
O livro traz
depoimentos e comentários de vários intelectuais, todos reconhecendo os méritos
de Assis Fortes, como historiador e preservador mor da memória histórica e
arquitetônica da cidade. A orelha, de denso conteúdo, foi escrita pelo
jornalista e agitador cultural Elias Júnior, filho de Elias Medeiros, que me
revelou, tempos atrás, haver conhecido meu pai, quando ambos ainda eram jovens.
Pinço-lhe este trecho: “Assis Fortes nos faz sentir saudade do que a gente não
viveu. E nos apresenta uma cidade perdida na lembrança, desenhada em cada
relato com peculiaridades, desde o toque do sino da matriz até as raspas de
cera de carnaúba a encerar o assoalho do Cassino...”
Algumas vezes estive em
Esperantina, tanto em viagem a serviço, na época da extinta Sunab, como em
atividade cultural. Mais de trinta anos atrás, no apogeu de minha juventude,
saí de Parnaíba numa motocicleta, com o Reginaldo Costa, para fazermos uma
entrevista com o padre Ladislau João da Silva, que havia sofrido uma agressão
física, por causa de suas pregações e atividades libertárias e de
conscientização social. A entrevista foi publicada no jornal Inovação, em cujo
número foi publicado um poema de minha autoria, dedicado a esse sacerdote.
Há oito anos, quando
completei meio século de vida, lancei o meu livro Lira dos Cinqüentanos nessa
simpática cidade. Hospedei-me na casa dos pais da professora e historiadora
Teresinha Queiroz, que lhe fez a apresentação, em solenidade memorável, ocorrida
no auditório do fórum da Justiça Estadual.
Entre várias outras
pessoas, estavam presentes advogados, o magistrado Almir Dib Tajra, parentes e
irmãs da Teresinha Queiroz, o procurador de Justiça Alípio Santana, o escritor
A. Sampaio, creio que o historiador e genealogista Valdemir Miranda, o médico
esperantinense Almir Alves Rebelo e sua esposa, a professora da UFPI Emília
Gonçalves Rebelo, e o professor, compositor e instrumentista campomaiorense
José Francisco Marques.
A pretexto de contar
peripécias e proezas de Francisco Fortes, seu pai, o autor discorre também
sobre fatos da história de Esperantina, alguns mais antigos e outros bem mais
recentes, mas que interessam aos pesquisadores, porquanto revelam episódios da
história imediata, um pouco da história do cotidiano, em que certos costumes e
peculiaridades são mostrados. Embora Assis Fortes seja um entusiasta de sua
terra, não é um cego ufanista, e mostra também as suas mazelas, evidentemente
apontando sugestões e soluções aos problemas que denuncia.
Conta homericamente as
façanhas de Francisco Fortes, quase todas jocosas, muitas das quais ficaram
imortalizadas no anedotário oral da cidade. Além de esse personagem ser um tipo
brincalhão, dado a fazer “pegadinhas” com os seus amigos, tinha uma força
descomunal. Numa dessas proezas, em que utilizou seu vigor físico, segurou uma
pesada estaca, que se inclinara perigosamente, para que os fogos de artifícios,
nela dependurados, não atingissem as pessoas, que se encontravam no logradouro,
onde o evento festivo ocorria. Francisco Fortes era, literalmente, um forte.
Em outro episódio,
depois de haver tentado por várias vezes conter um bêbado, que incomodava os
clientes do comércio em que trabalhava, retirou do recinto o gordo batoré,
suspendendo-o, com um só braço, pelos cabelos. Era, não resta dúvida, uma
espécie de Maciste da velha Retiro da Boa Esperança, digno de uma destacada
participação nesses velhos épicos da cinematografia italiana. Era, com efeito,
um legítimo Hércules de uma nova e verídica mitologia.
Parte do livro é
composta de um misto de artigos/crônicas, geralmente concisos e de pequeno
tamanho, sobre variados assuntos, mas todos referentes a Esperantina, e quase todos
de caráter memorialístico, em que fatos históricos e costumes são abordados,
ainda que com leveza e sem minudências bibliográficas.
Chamou-me especialmente
a atenção a entrevista com o ectoplasma do “capitão” cigano Benjamim Medrado,
no ensejo da memoração do centenário da tragédia cigana, ocorrida no velho povoado
de Retiro da Boa Esperança, de que se originou a cidade de Esperantina. Essa
tristemente célebre chacina, praticada em 1913 por militares da Polícia
piauiense, é revista e, de certa forma, passada a limpo nesse texto.
Fiquei desconfiado
sobre a veracidade da ocorrência dessa conversa de Assis Fortes com o suposto
espírito do capitão Medrado, pois sei que o nosso autor é católico praticante e
fervoroso. Também estranhei porque tanto as perguntas do autor como as
respostas do ectoplasma eram repletas de dados históricos, presumivelmente
precisos, inclusive com citação de fonte e data, como se houvera sido feita
previamente uma pesquisa.
Preferi ignorar esses
detalhes e procurei lê-la como se fosse realmente uma conversa com alguém que
já fora “para o outro lado do mistério”. Contudo, as aspas e a nota de rodapé
vistas na página 96 me levaram à conclusão de que a materialização do capitão
cigano Benjamim Medrado era mesmo um recurso fictício do autor para atrair mais
ainda a atenção do leitor.
Caso a aparição do
fantasma do cigano Medrado tivesse sido real, gostaria que Assis Fortes lhe
tivesse perguntado alguma coisa sobre como é a existência além desta vida
terrena. Brás Cubas, que, pela arte e feitiço do Bruxo do Cosme Velho, escreveu
as suas memórias póstumas, nada esclareceu sobre a vida no além-túmulo,
preferindo falar de sua vida neste velho mundo terráqueo, fazendo mesmo questão
de consignar: “... evito contar o processo extraordinário que empreguei na
composição destas Memórias, trabalhadas cá no outro mundo. Seria curioso, mas
nimiamente extenso, e aliás desnecessário ao entendimento da obra.”
O certo é que ficamos
sem saber como Brás Cubas teria escrito e publicado sua obra póstuma, fato que
não aconteceu com o texto de nosso bravo Assis Fortes, que teria se comportado
como um legítimo médium vidente. Contudo, como no final esclarece o autor da
entrevista fictícia, trata-se de um texto repleto de informações verídicas,
baseado em boas fontes históricas e em depoimentos orais de pessoas sérias e testemunhas
presenciais do trágico fato histórico.
Um olhar sobre
Esperantina é um olhar instigante de filho e de amante, que zela, mas desvela e
revela, que aprecia e admira os encantos desse torrão, mas desnuda as suas
mazelas e defeitos, em busca das correções e do aperfeiçoamento; que lhe exalta
as louçanias e belezas, mas também investiga o que precisa ser investigado e
trazido à luz da publicidade.
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