sexta-feira, 10 de julho de 2015

Elmar Carvalho: a toga, a memória e o lirismo



Charges: Gervásio Castro

Elmar Carvalho: a toga, a memória e o lirismo

Cunha e Silva Filho
Escritor. Professor. Pós-doutor em Literatura Brasileira

A carreira do escritor Elmar Carvalho se divide, a meu ver, em duas fases: a de maior expressão, a poesia de vanguarda, que lhe deu notoriedade e a da sua produção em prosa algo conservadora, mas não anacrônica. A poesia, por enquanto, quero crer que possivelmente hoje a cultive por via indireta, ou seja, pelo saudável exercício das leituras.

            Contudo, ninguém pode exigir que um poeta que escreveu obra de reconhecida qualidade estética seja obrigado a produzir por vontade e desejo alheios. A poesia, como qualquer obra literária, não nasce por decreto ou por injunções legais. Só ao poeta é dada a possibilidade de livremente criar ou não.

            A criação literária é um fenômeno artístico que só medra como manifestação natural da vontade de quem a produz, no tempo que lhe aprouver. O silêncio poético só aos poetas pertence. Em consequência, não temos o direito de lhes exigir nada no domínio criativo.

            Ao falar da prosa de Elmar Carvalho, me refiro ao gênero ficcional. Por outro lado, não estou insinuando que em outras manifestações da escrita não-ficcional, ele tenha produzido obra inferior, porquanto no ensaio não acadêmico, na crítica igualmente não-acadêmica, assim como na crônica de caráter lírico, dramático ou lidando com matéria sobrenatural, o poeta Elmar Carvalho tem sabido produzir alguns textos de indiscutível qualidade literária.

            No autor, entretanto, a poesia se insinua em sua produção não-poética, i.e., o lirismo, nele permanente como estratégia de linguagem de maior imaginação criadora, não lhe permite deixar de vez a poesia, ainda que não o queira. Por conseguinte, no ponto mais alto de sua obra, continua poeta e, em segundo plano, o prosador, quer no ensaio, na crítica esporádica e na ficção. É dentro dessa perspectiva de abordagem crítica que me volto para comentar-lhe o livro de memórias recém-editado, Confissões de um juiz (Teresina: Academia Piauiense de Letras, 2014, 193 p. Prefácio de Reginaldo Miranda).

            Determinadas vidas merecem transformar-se literariamente em memórias em face de sua específica trajetória profissional e pessoal. No exemplo do poeta Elmar Carvalho, pelas circunstâncias e impactos de sua vida pessoal e profissional, o recurso do autor a reproduzir criativamente certas partes significativas de sua vida não lhe veio por veleidades ou exibicionismos subalternos, mas para dividir com o leitor o que de seu percurso existencial valeria a pena ser compartilhado pelos seus coetâneos. Pode ter sido uma forma de catarse, pode também ter sido uma vontade insopitável de dar testemunho da experiência de vida do seu tempo tanto na carreira de magistrado quanto na de um homem que enfrentou os desafios e os rigores provocados por uma doença que o atingiu por duas vezes e da qual saiu vitorioso.

           Suas memórias, segundo assinalou no final do prefácio, são “confissões,” o que quer dizer que nelas os relatos se fizeram a bem da verdade, sem subterfúgios, sem maquinações.

Procurou, assim, a verdade limpa e desnuda, a que, enfim, interessa como lição de vida dividida entre o afeto, a dor, a saudade, as perdas, os ganhos e o pacto com a literatura rememorativa, que se alinha, desde os primeiros cronistas portugueses, os primeiros historiadores lusos, as primeiras biografias em língua portuguesa a se interessarem pela experiência vivida em várias situações da existência humana.

Aí se incluem os nomes que primeiro vão dando um contorno memorialístico a narrativas que fizeram história, aí se incluindo os nomes de Garcia de Resende, com as suas Miscelâneas, e o de Fernão Mendes Pinto com a sua Peregrinação. A linhagem se avoluma com o passar dos séculos até chegar à contemporaneidade.

O mesmo se poderia afirmar das primeiras produções literárias brasileiras com acento memorialístico, desde a carta de Pero Vaz de Caminha até aos tempos de hoje, em que o Brasil pôde contar com grandes nomes de autores de memórias, Joaquim Nabuco, Gilberto Amado, Érico Veríssimo, Álvaro Moreira, Humberto de Campos até culminar com o grande memorialista Pedro Nava.

No Piauí, penso que temos ainda uma quantidade considerável de livros de memórias ou autobiografias. Do meu conhecimento, alguns autores já enveredaram por este gênero. Sem citar os títulos, menciono pelo menos os autores: H. Dobal, Nasi Castro, Francisco Miguel de Moura, Eleazar Moura, Geraldo Almeida Borges, Celso Barros Coelho, Homero Castelo Branco, José Ribamar Garcia, Assis Fortes, Olemar de Souza Castro e o autor deste artigo, que acaba de concluir um livro de memórias, de título Apenas memórias.

Cada livro de memórias singulariza-se por um traço particular, por uma escolha geralmente circunscrita à vida profissional do autor, que pode ser um médico, um professor, um escritor profissional, um juiz, um cientista, um político um ator, um militar etc. A profissão compreende as vivências do memorialista e é a partir dela que o autor se alia ao papel do escritor-memorialista.

No exemplo de Elmar Carvalho se repete esta estratégia narrativa neste gênero literário.

No poeta Elmar Carvalho, do ponto de vista profissional, um ciclo de vivências se fechou logo que lhe veio a aposentadoria de juiz. É desse recorte de sua experiência como juiz que nele surge a possibilidade de contar suas memórias. Dessa empreitada se saiu muito bem como artista da palavra a serviço das evocações de um juiz que percorre lugares diversos do interior piauiense, do seu dia-a-dia de julgador de litígios, de conciliador nos momentos em que era preciso pesar na balança da justiça os prós e contras a fim de dar o veredicto mais justo possível ou, como o memorialista deixa sugerir nos seus relatos, julgar sempre tendo em vista o lado dos mais fracos.

Seu percurso de magistrado se realiza em várias comarcas, cada qual com suas peculiaridades, com a sua realidade própria e com seus diferentes problemas. Poder-se-ia dizer, o juiz Elmar Carvalho é sempre aquele viajante compelido, por seu ofício, a mudar de lugares, a conhecer outras pessoas, a conviver com o provisório.

Poderia chamar seus relatos de memórias telúricas, visto que o juiz com suas “confissões” não perde tempo para ir registrando fatos, cenas, paisagens, natureza diversa, pessoas diferentes que encontrou em cada comarca interiorana para a qual era designado.

A paisagem interiorana, os costumes, os hábitos, a vida social, a vida cultural, se lhe fixaram na retentiva. Tal espólio da memória - “quase dezessete anos de magistratura” -, se lhe tornaria farto material de rememoração e de análises instigantes em forma de livro.

Confissões de um juiz não se cinge apenas à experiência técnico-burocrática de um magistrado-poeta. As memórias se expandem a outras vertentes de sua função.

O memorialista não é só o homem da Justiça, mas o cidadão que tem suas aspirações e seu idealismo, além de sua atuação de escritor, de cronista, de ficcionista, de ensaísta que não para de publicar, tem seu blog, vive a vida intelectual piauiense, está em sintonia com o mundo acadêmico e com a vida literária de seu Estado. Participa de questões ambientais, culturais, desportistas, como, no caso da primeira, a da preservação do rio Parnaíba em páginas contundentes de reação contra os inimigos da natureza.

A obra em exame não é só depositário de fatos da vida de um juiz, mas se compõe de textos pictóricos onde o estatuto da linguagem assume toda uma força lírica, com belas e comoventes passagens onde se distingue o talento do memorialista na pintura da paisagem, da flora e fauna piauienses, como são exemplos paradigmáticos, na segunda parte da obra, “Memórias afins,” passagens de muita beleza e vigor descritivo (“Oração à Vila de São Gonçalo de Regeneração”, p.57-65 “Evocação de Piracuruca,” p.79-81).

Porém, a beleza de alguns textos não se faz apenas de paisagens bem descritas, mas também de textos alusivos à condição da justiça praticada para o bem e à necessidade da prática da bondade consoante lemos na seção “Exortação à justiça e à bondade (p.74-77).

O memorialismo de Elmar Carvalho reúne uma gama de visões e perspectivas formando um painel no qual o autor fala de escritores, pessoas comuns, servidores da justiça, condição humana, injustiças, prepotência, vícios humanos, erros da administração pública, erros da justiça, em que nada lhe escapa do olhar de espectador atento às misérias humanas.

Outros temas lhe são caros nas relembranças, a sua participação de atleta, de goleiro, a sua permanência no Recife a fim de realizar um curso de monitor postal.

Não lhe falta fortaleza moral para reportar-se ao câncer de que foi vitima, da luta para a sua recuperação e cura, de uma recaída, formando estes relatos um ponto algo trágico de sua caminhada existencial, felizmente tendo superado tudo com uma vida renovada e pronta a seguir sua travessia agora mais empenhada no universo em que talvez mais se sente bem e recompensado, que é o de produzir literatura.

Prende-me a atenção, de forma especial, por seu sentido de humanidade, de afeto, e de saudade, a terceira parte das memórias, denominada “Memórias afetivas.” Neste capítulo o poeta Elmar despe-se de qualquer formalismo de linguagem e adentra o mundo dos sentimentos, contudo, sem pieguismo.

Discorre sobre a perda da mãe, da família, da morte precoce e trágica de sua irmã Josélia, de seu amigo inesquecível, Zé Henrique, de seus antepassados, da grandeza moral de seu pai, Miguel Arcângelo, felizmente ainda lhe dando o prazer de seu convívio, da perda inconsolável de sua irmãzinha Josélia, falecida, aos quinze anos, em acidente de carro, de seus amigos, de seus irmãos e irmãs e last but no least, das mortes de duas cachorrinhas de estimação, exemplos edificantes da capacidade de animais serem tão humanos, tão mais do que alguns humanos, Belinha e Anita, em textos de beleza pungente, em cujo tempo de leitura não contive as lágrimas.

Elmar Carvalho pertence à estirpe de escritores que não deixam escapar a conveniência de entender a “alma” dos bichos, como o fazia tão bem outro retratista de animais, o escritor Guimarães Rosa (1908-1967), com a sua modelar estória de profunda humanidade, “O burrinho pedrês", um conto de Sagarana (1946). Assim como podíamos citar outros escritores que deram estatura de humanidade a animais e bichos, como Graciliano Ramos (1892-1953), com a sua cadela Baleia, de Vidas secas (1938) e o ficcionista piauiense, Rivanildo Feitosa, em clave cômico-erótica, com a personagem-protagonista, uma cadela vira-lata, de nome Sabiá, do romance Reflexões de uma cadela vira-lata (2011).


A derradeira parte das Memórias de um juiz se destina ao que chama de “Memória fotográfica.” O bom é que para cada foto o autor preparou pequenos textos informativos sobre as fotos, num total de 29, representativas de momentos marcantes de sua vida pessoal, familiar e profissional. Finalmente, ao livro acrescenta uma quinta parte, formada de depoimentos sobre o autor de figuras da vida cultural piauiense. As duas últimas páginas contêm uma “síntese biográfica do autor."

4 comentários:

  1. Valeu, caro Cunha!
    Seu texto é um excelente ensaio, que muito me honra.
    Quando for publicar meu livro na internet, seu texto o integrará, pois é muito elucidativo.
    Obrigado por sua leitura atenta.
    Abraço,
    Elmar

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  2. Este comentário foi removido pelo autor.

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  3. Tive a honra e o privilégio de conhecer e trabalhar com essa impoluta figura, poeta e magistrado, a quem devo muito do meu aprendizado, como homem e profissional da seara jurídica.
    Rendo aqui, portanto, minha singela e sincera homenagem ao grande juiz e poeta Elmar Carvalho. Grande abraço. Jardiel Araújo

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  4. Caro Jardiel,
    Fiquei muito feliz com suas palavras.
    Sei que não as mereço in totum, mas mesmo assim não pude deixar de ficar contente.
    Abraço,
    Elmar Carvalho

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