9 de julho Diário Incontínuo
O PALHAÇO ASSASSINO
Elmar Carvalho
Como já tive
oportunidade de dizer, em meus tempos de garoto fui levado a cinema, jogo de
futebol e a espetáculos circenses por meu pai. Disso guardo enternecidas e
saudosas lembranças, que me provocam um misto de regozijo e nostalgia. Portanto,
assisti a talentosos palhaços, mestres das gargalhadas e da alegria, que me
encantaram em minha meninice. Infelizmente, desde muito tempo, em sentido
impróprio e pejorativo, palhaço passou a ser sinônimo de moleque, de malandro,
de dissimulado, de debochado etc.
Depois, em minha
juventude e maturidade, admirei alguns notáveis humoristas, como Chico Anysio,
Jô Soares, Renato Aragão, o Didi, Dedé Santana, Mussum, Tutuca (com seu célebre
bordão: “Ah, se ela me desse bola...), Ronald Golias etc. São os comediantes da
contemporaneidade ou os famosos palhaços da TV. Todavia, enquanto existir
circo, acredito que os palhaços, de exageradas mímicas, de roupas
espalhafatosas, bufantes e coloridas, de enormes e largos sapatos, de caras
pintadas, de ridículas perucas ou mais ridículas carecas, continuarão
existindo.
A literatura e o cinema
celebrizaram ou mesmo criaram imortais palhaços. Seguindo a legenda de que o
show não pode parar, de que tem de continuar de qualquer maneira, o grande
poeta cearense padre Antônio Tomaz, em comovente soneto, relata que certo
palhaço, embora com o coração dilacerado pela morte da filha querida, por
exigência do dono do circo, teve que se apresentar no picadeiro. Foi compelido a
fazer a plateia gargalhar, conquanto sua alma soluçasse.
O sublime poeta alemão
Heine, no poema O tédio, conta a história de um homem, que consumido pela
tristeza, que hoje seria rotulada como sendo uma depressão aguda, foi consultar
famoso médico, tendo este lhe recomendado que fosse assistir às apresentações
do palhaço Arlequim, mestre supremo da arte de arrancar gargalhadas e aplausos.
O paciente, ante essa “receita”, declarou que o seu mal não teria remédio,
porquanto ele era esse considerado inigualável clown.
Ainda ontem, através da
Netflix, assisti ao filme espanhol Balada do amor e do ódio, que conta a
história do triste palhaço Javier, que se apaixonou pela linda trapezista
Natália, namorada de outro palhaço, de nome Sérgio, grande em sua arte, mas
violento em sua vida pessoal. Belo filme, que recomendo aos amantes da sétima
arte. Pensei que seria uma tragicomédia, mas na verdade foi uma pura tragédia
passional de artistas que, apesar de tudo, amaram a arte circense e as
crianças.
Poderia ainda citar a
personagem trágica do conto O aniversário da Infanta, de Oscar Wilde. Trata-se
de um anão disforme, de feiura grotesca, mas que arrancava gostosas gargalhadas
da princesa e de seus nobres companheiros, como se fora um legítimo bobo da
corte. Ou poderia falar de O Bobo, protagonista maquiavélico do romance de
mesmo título, de Alexandre Herculano. Contudo, para não me avantajar em linhas,
deixo que o leitor se encarregue de conhecê-los na íntegra, fazendo uso das
narrativas originais.
Já escrevi vários
textos sobre circos e palhaços. Sobre Slava Polunin, do Cirque du Soleil,
produzi uma crônica, em cujo final digo: “Além de atuar em vários shows de
palhaçadas (no bom sentido da palavra), criou alguns números para o Cirque du
Soleil. Perguntado sobre se era alegre, ao contrário dos palhaços de Heine e do
padre Antônio Tomás, respondeu que era radiante. Todavia, depois, em outro
trecho da entrevista, quando a apresentadora lhe perguntou se tinha algum
momento de tristeza, disse que sim. // Claro, como em todo ser humano, em sua
alma deve haver alguma hora sombria, por onde se infiltra o fio insidioso de
sutil melancolia.”
A respeito de outro
palhaço, nascido na antiga União Soviética e falecido nos sertões de dentro,
mais precisamente na cidade de Jaicós, muitas décadas atrás, cuja história me
foi narrada pelo deputado Humberto Reis da Silveira, compus o poema A cova do
palhaço, do qual transcrevo os seguintes versos: “Distante do rincão eslavo, /
numa cidadezinha perdida do agreste, / traspassado pela irremediável tristeza
infinita, / nostálgico de tudo, nostálgico e só, / morreu numa tarde tristonha,
/ na hora melancólica do sol-posto. / Pó ao pó. Corpo deposto.”
Meu pai, Miguel
Arcângelo de Deus Carvalho, que em sua maturidade escreveu algumas crônicas e
artigos, vários publicados no jornal A Luta, de Campo Maior, elaborou o texto
Palhaço, em que consignou: “(...) como disse, certa vez, um velho pensador: “Tenho servido de agulha a muita linha
ordinária”; diria eu, agora, tenho servido de palhaço a muita platéia
ordinária.” Trata-se de mera força de expressão, de retórica, de metáfora. Meu
pai nunca foi palhaço. E sempre mereceu o acatamento e respeito de seus amigos,
familiares e contemporâneos.
Agora, para meu
assombro e tristeza, pela televisão, soube da existência de um palhaço
assassino. Já conhecia a personagem cinematográfica Chucky, o brinquedo
assassino. De qualquer forma palhaço e brinquedo, por sua própria finalidade,
não se harmonizam com tristeza e morte. Na verdade ambos devem proporcionar
alegria às crianças. O chamado palhaço assassino, por motivo de ciúme, teria
matado a sua jovem esposa, com quem tinha uma filha de apenas cinco anos.
Cai a empanada, com
rubras manchas de sangue, sobre o picadeiro. E os holofotes se apagam.
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