HISTÓRIAS DE ÉVORA E/OU A
TRANSFIGURAÇÃO DE UM POETA EM PROSADOR
Ivanildo di Deus
Professor e
escritor
Elmar Carvalho, com a publicação
de “Histórias de Évora”, transfigura-se como polivalente literato piauiense,
pois, além de poeta, contista, cronista e ensaísta histórico, agora envereda
pela feitura do “romance”, um bildungsroman (romance de formação ou desenvolvimento),
auto-afirmando-se como prosador.
Sem dúvida, creio, este foi o
maior desafio da carreira literária deste insaciável e incansável benfeitor das
letras piauienses, um verdadeiro “Andarilho da Palavra”, no dizer do mestre e
saudoso poeta Hardi Filho. “Andarilho da Palavra” porque Elmar faz
(in)contínuas andanças e perambulanças na seara da literatura e ainda, desde
sua juventude, percorre o território piauiense divulgando a sua e nossa medonha
produção intelectual.
Tal desafio é sugerido nas
entrelinhas pelo próprio autor quando em “Advertências”, tratativa inicial da
obra, afirma: “Considero este livro como sendo meu (quase ou possível)
testamento literário...”.
Superar-se, ir além das
possibilidades, probabilidades e nuances literárias sem perder o foco de
aprimorar a qualidade da produção textual.... É sim o grande desafio que o
autor se propôs neste bildungsroman.
Abordo alguns aspectos quanto à
construção e qualidade literárias deste trabalho, pioneiro do gênero no mundo
literário piauiense.
1º) A estrutura do tecido
literário é escrita numa linguagem simples, lapidada e cristalina que faz o
leitor imergir-se/submergir-se e deleitar-se/ludibriar-se com a leitura do
texto.
O escritor e contista piauiense
João Pinto, radicado em Manaus (AM), ao escrever seu primeiro romance
intitulado “As pedras Doentes da Rua do Fio”, obra não publicada e que tive o
privilégio de ser um dos seus primeiros apreciadores, utiliza-se, também, de
uma linguagem simples, lapidada e cristalina como o fez Elmar. João Pinto
abandonou a linguagem rebuscada e considerada de “difícil entendimento e
decodificação pelo leitor comum” construída na sua produção literária anterior,
como em “Luzes Esvaídas” e “O Ditador da Terra do Sol”, aprimorando sua
estilística literária.
Parece-me ser uma tendência da
construção da tessitura literária de vários autores prosadores lapidarem seus
textos com a simplicidade da linguagem, objetivando torná-los mais atraentes e
convincentes ao leitor.
2º) O emaranhado construtivo dos
enredos traz requintes de elevada inventividade literária. Nenhuma narrativa
desfecha-se simploriamente, nem segue o mesmo padrão epilológico. Antes de
tudo, carregam em seu esqueleto estrutural aspectos envolventes de criatividade
que prendem o leitor ao texto e explicitam o desejo de mais querer, de mais
prosseguir, de mais saborear a leitura. Além disso, certos desfechos de
episódios vividos por Marcos Mendes Azevedo, narrador e protagonista, acontecem
em capítulos diferentes, anos ou décadas depois, consoante necessidade
estrutural do enredo ou da tessitura do texto. É o caso da “tola e presunçosa”
“linda garota loura, muito alva, de olhos azuis, de pele muito fina e
sedosa...” “... neta do alto comerciante James Cavalcante Taylor...” (O Dono do
Céu. Capítulo II) “... que tanto
encantara Marcos em sua adolescência...” e que se transformara “...na moça
loura, um tanto gorda, de olhos azuis, meio enevoados pelo que poderia ser o
prenúncio de alguma doença ocular; (que) apresentava sinais de espinhas, sarda
e varíola no rosto.” (E Assim se Passaram os Anos. Capítulo XXXVI).
3º) Os enredos também traduzem um
leve tom de tragicidade, casos: 1) da morte de Suzana, aos 17 anos, “vítima de
fulminante aneurisma”, a garota doente mental que desafiou Marcos ao sexo. (“O
apelo do sexo. Capítulo III); 2) do suicídio de Marlene, a rapariga desiludida
com o amante, que embebeu as vestes e lençóis com querosene e ateou fogo no
corpo. (“Prostituição e tragédia familiar”. Capítulo XVII); 3) da morte por
afogamento de Zé Lolô, o lobisomem eborense, enganchado na própria tarrafa. (“O
lendário Zé Lolô. Capítulo XVIII); a suposta morte de Eugênio Dantas, o
inventivo Pardal, quando tentou alçar voo com sua asa delta artesanal de um
ponto do Boqueirão dos Ventos, na Serra do Cachimbo. (O voo do Pardal. Capítulo
XXVII).
4º) A narração-descritiva das
aventuras amoroso-erótico-sexuais de Marcos Azevedo revelam, em seu traçado,
uma espécie de “minitratado sociológico dos cabarés eborenses, em especial os
da “Zona Planetária”. Senti-me no personagem em dados momentos, pois, a
retratação da vida, dos costumes, das relações daqueles lupanares reflete e
traduz fielmente o quadro sócio-comportamental-cultural dos existentes em
outras Évoras. Ilustra bem isso “Prostituição e tragédia familiar”, capítulo
XVII.
5º) Também revelam as narrativas da
vida social estratificada de cidades de pequeno e médio porte como Évora, com
suas difíceis e discriminadoras relações sociais.
6º) Com a licença do autor,
considero haver uma lacuna gritante em relação ao contexto sócio-político,
especialmente político, dos anos de 1970 e 1980, vivido por Marcos Azevedo e
seus companheiros de trama. Naqueles idos, travou-se uma consistente e tremenda
luta de resistência democrática ao regime ditatorial militar instalado no país
em 1964 e que perduraria até 1985. Elmar Carvalho, por ser um conservador
moderado, propositadamente deve ter deixado de abordar isso. Contudo, seria um
pertinente e interessante “pano de fundo” ao romance ter-se partido por esta
vertente histórica como suporte e incremento literários.
7º) Considero um grande recurso
estilístico a ideia de dois narradores em tempo e faixa etária distintos,
incorporando o mesmo personagem. O narrador dois, Marcos Azevedo adulto e
experiente, “descambando para a velhice”, complementa o narrador um, o Marcos
Azevedo adolescente, aprendiz e embuchado de sonhos. Registre-se que o narrador
dois faz um discurso narrativo-dissertativo, demonstrando suas qualidades de
escritor e homem de virtudes concretas.
No Mais, Histórias de Évora é um
romance gostoso e recomendável de ler. E se este bildungsroman é o “testamento
literário” de Elmar Carvalho, de quão grande espólio se beneficia nossa
literatura.
Talvez, Poeta, o mais alentado e elucidativo estudo sobre Histórias de Évora, em particular por tão bem caracterizá-lo como um "romance de formação", não esquecendo de enquadrá-lo ainda como uma novidade no alentado meio literário piauiense.Quanto ao fato de não o contextualizá-lo ao período político vivido nos anos 80/90, creio ter visto nisso mais uma grande sacada do autor, que não quis enveredar por esse meio tão torpe(apesar de falar muito sobre os tradicionais lupanares).
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