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Couro grosso
Pádua Marques
Jornalista, contista e cronista
Sebastião
Faustino, se não fosse a cachaça, havera de ser um dos homens mais ricos da
Parnaíba. Coisa de ter conta no Banco do Brasil na praça da Graça, andar de
automóvel pra cima e pra baixo igual seu Roland Jacob, conhecer deputado,
prefeito e governador, dar esmola e ser padrinho de casamento e de batizado de
muita gente na Ilha Grande de Santa Isabel, desde o Alto do Batista até o
Labino. Mas não. O vício pela bebida e as mulheres da vida dos Tucuns não
deixaram.
Tanto
fez e deixou de fazer que estava ali agora na maior miséria, numa cama da Santa
Casa de Misericórdia, junto da mulher Judite e dos dois filhos, João e
Raimundo, pedindo por Deus a caridade de doutor Cândido Ataíde pra que não lhe cortasse
o pé, atingido o calcanhar por uma mordida de piranha numa pescaria sem motivo
nas lagoas do Labino. De madrugada, sozinho, vindo da farra na Parnaíba e que
lhe tinha tirado a saúde e o sossego da família desde o final de junho, quando
as águas baixaram.
Foi
coisa de ir pra Parnaíba fechar uns negócios com palha e depois se enfiar nos
cabarés do Cheira Mijo gastando o apurado, pagando, cigarro, vinho e conhaque
pras putas, dando gorjeta pra dono de boteco, menino pidão, engraxate da praça
da Graça, algum esmoler que lhe pedisse um tostão e tudo o mais e se esquecendo
de voltar pra casa onde havera de ter deixado mulher e menino esperando!
A
última notícia que se teve de Sebastião Faustino foi de que foi visto saindo da
Casa Inglesa e na companhia de um conhecido, de nome Bernardo. Coisa de cair da tarde, indo direto pra o rumo
da Igreja do Rosário. Rezar não deve ter ido. Sebastião Faustino nunca foi de
pisar dentro de igreja pra assistir uma missa que fosse! Pra dizer que não foi,
foi no batizado do primeiro filho, João, menino hoje chegando aos dezesseis
anos e que ajudava já no corte de palha.
O
outro menino, Raimundo, de uns doze anos, foi dado de criação pra os avós na
Ilha das Batatas. Foi quando a mãe não aguentando as bebedeiras do marido
livrou o filho das incomodações. Mas agora
ela e os filhos estavam ali ao lado da cama do pai doente. Sebastião Faustino
às vezes chorava muito pelo medo de ter o pé cortado. Pensava que nunca mais
seria homem de sair de casa, fazer pescaria, nadar e tomar banho nas lagoas de
águas frescas do Labino. Talvez nunca mais fosse homem de caçar passarinhos,
xexéus e periquitos, aqueles mesmos que faziam seus ninhos nas carnaubeiras.
A
carnaúba era assim na Parnaíba. Dava com uma mão e tirava com a outra. Pra quem
não tinha ambição, vivesse direitinho e sem esbanjamento e não soubesse
trabalhar com ela, o destino era a pobreza. Servia sim, pra enricar gente da
Casa Inglesa e outras famílias de pente de ouro. Gente que tinha casa boa e até
palacete na rua Grande e praça de Santo Antonio. Gente que tinha automóvel,
fazenda de gado no Macacal e Ilha das Batatas, nas Canárias, no Buriti dos
Lopes. Mas pra gente que bastava pegar em dinheiro, feito Sebastião Faustino,
que não media distância com gastar o dinheiro na rua, era depois só dor de
cabeça.
Saía
de madrugada, ainda tudo turvo, todo pronto, como quem ia votar em dia de
eleição ou se consultar na Santa Casa de Misericórdia com doutor Mirócles. Vez
por outra levava um animal, tomado emprestado do vizinho, o negro Timóteo. Vendia
a cera de carnaúba ainda na palha. Sebastião era bom de conta. Quando faltava o
combinado com a Casa Inglesa ou outro comprador menor, comprava de algum
vizinho.
A
mulher em casa já ficava com a mão na cabeça, carregada de preocupações. Coisa
de correr no oratório dentro da camarinha e pedir a Nossa Senhora da Conceição
e São Francisco das Chagas que o trouxesse de volta são e salvo. Mas os pedidos
de Judite não eram suficientes! Sebastião Faustino era homem de pouco juízo
naquela cabeça grande.
Passava
boa parte do tempo no carnaubal ou nas pescarias de lagoas de água doce nos
Morros da Mariana. O dinheiro era pouco. Mal dava pra comprar aqui e ali algum
mercado de querosene pras lamparinas, açúcar, sal, café, quando muito arroz,
rede pra quem estivesse com mais necessidade, um vestido de chita pra Judite,
sabão pra lavar roupas e os trens de cozinha, cordas, fios pra punho de rede,
linha pra tarrafa, chumbo e anzol. Mas às vezes essas mercadorias eram trocadas
na Casa Inglesa pela cera trazida em cima de jumento e depois canoas até
chegarem na Parnaíba.
Quando
estava bom e longe da bebida e estava no carnaubal, Sebastião Faustino às vezes
se punha a olhar a vasta mata de palmeiras altas e que o vento acabava fazendo
um barulho nas palhas, coisa de meter medo se estivesse sozinho naquele terror
de sol do meio da tarde. Ficava ali horas e horas olhando pra copa delas, umas
mais baixas, outras mais altas e mais velhas. Aquela mata de carnaubeiras novas
era de onde sustentava e levava alguma coisa pra dentro de casa.
E
pensava como é que podia toda aquela cera, que ele mesmo achava que não tinha serventia,
valor de nada, aquele pó que, se pegasse nos olhos era capaz de cegar um
cristão, estava rendendo muito dinheiro na praça comercial de Parnaíba e
fazendo fortuna na Casa Inglesa e nos escritórios de seu Roland Jacob? Agora se
lembrava de que tinha visto uma novidade na loja de seu Pedro Machado, ou do
Franklin Veras, não sabia ao certo. Uma lanterna. Haveria de tão logo o
dinheiro chegasse, iria comprar uma lanterna. Seria melhor pra fazer as
pescarias à noite no caminho das lagoas. Melhor do que as lamparinas de Judite!
Mas
depois daquele dia de negócios e de volta pra casa no meio da noite, na
escuridão de meter dedo no olho entre o cais do outro lado do porto Salgado até
chegar ao Labino, ouvindo o roçar do vento nas carnaubeiras, Sebastião Faustino
vinha muito embriagado. Das compras, a dona do cabaré, por precaução pediu pra
guardar, entregando tudo em segurança quando ele na semana voltasse na
Parnaíba. Deixou que levasse apenas a faca de cintura e a dita lanterna.
Sebastião
Faustino disse se gabando e onde estava, que não tinha medo de nada, tinha o
couro grosso, só temia os castigos de Deus. Couro grosso e torrado de sol a sol
naquela ilha ingrata, cheia de donos e que ninguém sabia ao certo de quem era.
Mas era ilha de caboclos machos, muita água, fartura de peixes, muricis, cajus,
de um tudo. Empanturrava tudo quanto era mercado de Parnaíba!
No
meio do caminho, naquela vastidão de terra coberta de dunas ao longe e cercada
de carnaubeiras silenciosas e aqui e outro ali, um pé de cajueiro, Sebastião
Faustino acendeu a lanterna e achou uma lagoa de bom tamanho. Aí veio a
tentação de nela tomar um banho. Foi se aproximando e logo foi tirando a roupa.
Ligou e enfiou a lanterna na areia fofa até a metade com a luz voltada no rumo
da água onde pudesse ver por estava indo. Nada e ninguém por perto.
Nu
do jeito que sua mãe colocou ele no mundo, Sebastião Faustino, no calor daquele
final de noite pra o início da madrugada entrou na lagoa até quando deu na
altura das coxas. Nadou por uns poucos minutos. A água fresca da lagoa deu alma
nova depois daquele dia de bebedeira no Cheira Mijo, na Parnaíba. Passados uns
minutos e já imaginando dar um mergulho, sentiu uma fisgada pequena no
calcanhar. Vai ver que fosse alguma piaba. Logo uma fisgada mais forte e outras
seguidas. Se apavorou e quando se deu conta já era tarde. Piranhas!
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