quarta-feira, 15 de fevereiro de 2012

ANO MARQUÊS DE PARANAGUÁ

Diplomata Marcus Henrique Paranaguá

 Jesualdo Cavalcanti Barros*

Com a bela palestra do jovem diplomata correntino Marcus Henrique Paranaguá, até há pouco servindo no consulado brasileiro de Nova Iorque (EUA), a Academia Piauiense de Letras deu início ao Ano Marquês de Paranaguá em concorrida solenidade no Auditório Acadêmico Wilson Brandão, na manhã do dia 11 de fevereiro de 2012.  O evento visa a celebrar o centenário de falecimento de João Lustosa da Cunha Paranaguá, segundo visconde e marquês de Paranaguá, ocorrido no Rio de Janeiro, em 9 de fevereiro de 1912. Paranaguá é patrono da cadeira nº 18, atualmente ocupada pelo acadêmico Herculano Moraes.
Pretende o sodalício, durante 2012, por meio de palestras, encontros, debates e publicações, sensibilizar a sociedade piauiense e suas instituições culturais e educacionais, para um amplo estudo da vida e da obra do preeminente coestaduano, por certo o maior de todos, embora pouquíssimo conhecido nestas plagas de tanto desleixo com sua cultura, valores e memória histórica.
Paranaguá nasceu na fazenda Brejo do Mocambo, nos remotos sertões de Parnaguá, “aquela espécie de nação gurgueia” de que fala Fonseca Neto, em 21 de agosto de 1821. Sobre esse sítio diria o ouvidor Antônio José de Morais Durão, em sua Descrição da Capitania de São José do Piauí, de 1772: “com 42 moradores, que fazem um povo mais numeroso que a própria vila, da qual dista 12 léguas ao mesmo rumo, mas nem nome tem de aldeia, nem juiz ou justiça, ao passo que se aumenta em cultura e negócio.” Na inspeção que realizou na vila de Parnaguá, instalada pessoalmente pelo governador João Pereira Caldas havia dez anos, despertou a atenção do ouvidor a saúde de seus moradores, graças aos bons ares, tanto que encontrara, nos 29 fogos em que se distribuía sua diminuta população, nada menos de três homens em avançada idade: um com 110 anos, outro com 112 e o terceiro com 120.
Com a opulência gerada pela criação de gado, de que resultaria a chamada civilização do couro, não admira que da velha fazenda  tenha surgido nada menos de 40% da nobiliarquia piauiense (o marquês com dois títulos e mais os irmãos – barões de Paraim e de Santa Filomena), no total de dez títulos para oito agraciados.
Paranaguá bacharelou-se na antiga Faculdade de Direito de Olinda, em Pernambuco (1846). Formar-se em Direito era o sonho dourado de jovens futurosos, justamente aqueles predestinados ao exercício de um “verdadeiro mandarinato” na sociedade brasileira dos séculos XIX e XX. Conforme exaustivas pesquisas que publiquei em Sertões de bacharéis, livro lançado no ano passado, muitos conseguiram realizá-lo. Destarte, oriundos da mesma academia, brilhariam dentro e fora da província, dentre outros, os piauienses Francisco de Sousa Martins (iniciara o curso em Coimbra), Casimiro José de Morais Sarmento, Marcos Antônio de Macedo, Antônio Borges Leal Castelo Branco, José Manuel de Freitas, Antônio de Sousa Mendes Júnior, Eliseu de Sousa Martins, Polidoro César Burlamaqui, Antônio de Sousa Martins e Antônio Coelho Rodrigues. Igualmente, à mesma época, buscariam a Faculdade de Direito de São Paulo: Francisco José Furtado (que iniciara o curso em Olinda, mas, perseguido por suas posições políticas, migrara para lá), José Basson de Miranda Osório, Lourenço Valente de Figueiredo e outros. Como se sabe, fundadas em 1828, com vistas a formar novos quadros dirigentes do País que emergia da Independência, em substituição aos velhos bacharéis coimbrãos, as duas academias atraíam os filhos da aristocracia rural enriquecida pelo trabalho escravo. Paranaguá não poderia fugir à regra.
Por outro lado, naturais de outras províncias mas egressos das mesmas academias,  aqui aportariam, para emprestar o concurso de seu talento à administração do Piauí, antes de alçarem altos voos no cenário nacional, outros brilhantes bacharéis. Citam-se, por exemplo, José Antônio Saraiva, João José de Oliveira Junqueira, Zacarias de Góis e Vasconcelos e Franklin Américo de Meneses Dória.     
                                                             ***
Deputado geral em cinco legislaturas (1850/1864) e depois senador vitalício do Império por cerca de 24 anos (1865/1889), sempre pelo Piauí, Paranaguá ocupou quase todos os ministérios no Segundo Reinado (da Justiça – duas vezes, da Guerra, dos Estrangeiros – duas vezes, da Marinha e da Fazenda). Não se sabe porquê, só não ocuparia dois: o do Império e o da Agricultura, Comércio e Obras Públicas. Além do mais, foi conselheiro do Império e desembargador da Relação do Rio de Janeiro.  Presidiu as províncias do Maranhão, de Pernambuco e da Bahia. Presidente do Conselho de Ministros (1882/1883), tornou-se o segundo piauiense a governar o Brasil. O primeiro fora  o oeirense Francisco José Furtado (1864/1865), embora militante da política do Maranhão.
Devotado ao estudo da realidade do País, presidiu a Sociedade de Geografia do Rio de Janeiro de 1883 a 1912. No biênio 1906/1907, também o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, tendo passado a presidência ao barão do Rio Branco, no ano seguinte.
Convém destacar, por um dever de estrita justiça, que na carreira fulgurante que o levou dos confins gurgueianos ao brilho dos salões mais sofisticados da Corte, inclusive por privar, como poucos, da intimidade de dom Pedro II, Paranaguá não se descurou da problemática piauiense. Ao contrário. Desde o primeiro momento de sua atuação parlamentar até o último suspiro, sustentou bandeiras ainda hoje recorrentes em nossa agenda de desenvolvimento, tais como a navegação do rio Parnaíba, a interligação das bacias do Parnaíba, São Francisco e Tocantins, a construção de um porto marítimo e a ligação deste com os demais portos do litoral brasileiro. Para ele, promovida a navegação, “o progresso e as ideias do tempo se introduziriam na província [...].” Assim, no firme propósito de dotar o Piauí do tão sonhado porto, não hesitou em patrocinar a permuta, pelo decreto imperial nº 3.012, de 1880, dos áridos sertões piauienses de Crateús pelas areias brancas da antiga freguesia cearense de Amarração, hoje Luís Correia, onde há mais de cem anos a lerda burocracia estatal teima em construí-lo. Paranaguá, arrostando descrenças e incompreensões, fez a parte que lhe competia, à época. E, se algum dia o Piauí concluí-lo, como se espera, que se louve a ação destemida desse gurgueiano de escol.
Por todos os títulos, Paranaguá deve ser motivo de orgulho dos piauienses.  Sobretudo, na atual quadra de baixa representatividade política, marcada por frequentes frustrações e desenganos. Com efeito, é fácil perceber que, depois dele e de Félix Pacheco, Petrônio Portella, Reis Veloso, Hugo Napoleão, Valdir Arcoverde, Freitas Neto e João Henrique, praticamente fomos escorraçados do centro das decisões nacionais. Pois bem, se não surgem novos valores, que ao menos se recorra aos velhos! Daí o acerto de nossa Academia em resgatar a memória do velho marquês. No mínimo, concorre para alimentar nossa autoestima, tão carente de estímulos na atualidade.  

 
*Membro da Academia Piauiense de Letras e presidente do Centro de Estudos e Debates do Gurgueia

DIÁRIO INCONTÍNUO

Apolo e a sibila de Cumas


15 de fevereiro

VONTADE DE MORRER

Elmar Carvalho

Minha mulher contou-me que, poucos dias atrás, quando foi efetuar o pagamento de uma compra, numa das lojas da rua Álvaro Mendes, ouviu numa fila, perto da sua, uma senhora idosa dizer para uma conhecida, de forma repetitiva e veemente, que desejava morrer. Aduziu que rezava diariamente para que Deus a levasse logo, que abreviasse os seus dias, que já não aguentava mais sua vida. Parecia não querer guardar segredo desse seu desejo um tanto raro, pois algumas outras coisas falou em voz baixa, apenas o suficiente para sua interlocutora ouvir.

Segundo a Fátima, a senhora que dizia ansiar pela morte deveria ter uns 65 anos de idade, ao passo que sua colega deveria andar em torno dos 60. A mais idosa, após efetuar o seu pagamento, foi logo embora. A outra disse, a título de explicação, dirigindo-se a minha mulher:
- Olhe, a gente deve ter paciência com essas pessoas, deve ouvi-las, procurar entendê-las... Que Deus perdoe uma pessoa assim!
A Fátima assentiu, com um aceno de cabeça, e nada mais soube do caso. Fez-me esse fato lembrar a história da sibila de Cumas, que tendo ganho uma vida longuíssima, não recebeu, contudo, a graça da eterna juventude – ela que por sua beleza arrebatara de paixão o deus apolíneo – e foi envelhecendo e se tornando cada vez mais feia. Já toda encarquilhada, engaiolada em profunda tristeza, quando lhe perguntavam o que mais desejava, respondia lacônica e melancolicamente:
- Quero morrer.

Fico a pensar o que levaria uma pessoa a alardear, em alto e bom som, sem nenhum recato, que gostaria de morrer, quase como se estivesse a fazer propaganda de seu sofrimento, de seu desapego à vida. Ao que me parece, os grandes sofredores, os depressivos, não fazem estardalhaço de sua dor; antes, guardam profundo silêncio em torno das causas de sua tristeza. A sua melancolia se reveste de enorme silêncio e absoluta discrição, recolhidos ao seu canto, longe do sol e do burburinho das ruas. E esse recolhimento lhes agrava ainda mais o sofrimento, que lhes empurra para a lassidão e a alcova, em legítimo círculo vicioso.

Dizem que o verdadeiro suicida não faz alarde de suas intenções. Um belo dia, quando os amigos e parentes menos esperam, ele se mata. Pelo que me consta as causas mais frequentes de suicídio são dívida, doença dolorosa e incurável, paixão incorrespondida, vergonha por algo que macula a honra e a tenebrosa depressão, que pode ser considerada o mal deste século, ao menos de suas primeiras décadas.

Uma moça, que não desejo situar, nem no tempo e nem no espaço, quando sofria uma desilusão amorosa, real ou imaginária, tomava vários comprimidos analgésicos; sofria uma indisposição e era levada para o hospital, onde se recuperava sem maiores complicações. Dizia haver tentado matar-se. Na verdade, tudo não passava de simulação, para comover o amado ou o amante de plantão, motivo da sua encenação tragicômica, mas com uma dosagem maior de comicidade. O outro pretenso suicida, de que ouvi falar, subiu em um tamborete, fez um laço em velha corda de tucum, amarrou-a em um caibro, e saltou do improvisado cadafalso. A corda, como era de se esperar, partiu-se, e ele rolou dramaticamente pelo assoalho. Levantou-se indignado, e exclamou em altos brados, em sua simulação macabra e hilária ao mesmo tempo:
- Miséria, diabos, nem para morreu eu tenho sorte!...
Nunca se lhe soube de nenhuma outra tentativa.
Montagem das fotos: portal Proparnaíba
Por cúmulo de lamentável coincidência, quando eu já estava no meio do parágrafo anterior, recebi um telefonema do historiador e advogado Reginaldo Miranda, presidente da Academia Piauiense de Letras, dando-me a infausta notícia de que o confrade William Palha Dias falecera há pouco. Era ele um escritor de mérito. Publicou livros na seara da historiografia, do conto, da novela, do romance e da crônica. Causeur admirável, era dotado de saudável bom-humor, detendo um vasto repertório de piadas e anedotas, algumas talvez de sua lavra, outras de que fora protagonista, com as quais ilustrava sua atraente conversação. Foi um juiz probo, honrado e brioso, que nunca se dobrou às conveniências dos poderosos. Ao contrário das três sibilas desta nota, Palha Dias era um homem vital, enérgico, com grande capacidade laborativa, comprometido com a vida, com a arte e com a cultura.
Palha Dias e Elmar Carvalho
Nos últimos dias estive pensando, repetidas vezes, em convidar o magistrado e acadêmico Oton Lustosa para tirarmos uma fotografia ao lado do Dr. William Palha Dias. Não faz muito tempo, lembrava o professor Manoel Paulo Nunes, em sessão da Academia, que nós três fomos juízes de sua terra, Regeneração, e depois ingressamos na APL. Lembro-me que, alguns anos atrás, salvo engano no dia da posse acadêmica da Teresinha Queiroz, tiramos essa foto, mas dela não tenho cópia. Muito me honraria tê-la em minha casa, ou no gabinete do juízo. Agora, já não mais posso realizar o meu desejo. Como diria Drummond, perdi o bonde e a esperança, e já não poderei rever o amigo Palha Dias, que há de permanecer no coração e na memória de nós todos, seus amigos e admiradores.

terça-feira, 14 de fevereiro de 2012

AMIZADE COLORIDA



José Maria Vasconcelos
Professor e cronista

Os anos 60 foram generosos na criação de novos verbetes(neologismos) ou velhas expressões com novos significados. Há uma profusão. Lembram-me alguns, criados pela juventude PRAFRENTEX: GATO(A), BRASA(sensual), GAMADO(apaixonado), MORA!?(entende?), JOVEM GUARDA, TREMENDÃO, CARANGO, COROA(avançado em idade), PSICODÉLICO(roupas e adereços multicores), TIRA(policial).
Jovens atuais são criticados pelos coroas, por conduta de FICAR, isto é, uma aventura rápida, sem compromisso amoroso para vínculos mais sérios. Eles não aprovam o FICAR, mas não se lembram dos velhos tempos da AMIZADADE COLORIDA, equivalente a FICAR, hoje. Ainda se acrescentava o SEX-APPEAL, a tentação do fruto proibido, a sedução PRAFRENTEX. E como funcionava o namoro? O marmanjo levava dias de espreitas e flertes. Depois da presa cair na arapuca, mais paciência para o primeiro beijo na boca ("Aquele beijo que eu te dei/ nunca, nunca mais esquecerei..." Roberto Carlos), mais um pouquinho para alcançar as mamilas. Depois, bem depois, desencadeavam o SARRO ou EMPINAR: esfregaço, muitas vezes, resvalado para o sexo. Aí, um deus-nos-acuda. Infeliz garota sem virgindade: era posta para fora da família, à deriva no mundo, arranchando-se em cabaré. A novela do SBT, FASCINAÇÂO retrata a terrível época da garota desvirginizada, na década de 40. Para alívio da moçada, a pílula do não-me-bote-neném já ocupava cabecinhas mais danadinhas dos anos 60. Daí, o movimento feminista atropelou a hipocrisia machista. A juventude tomou atitudes de "proibido proibir", um grito de liberdade a tudo que cheirasse a CAFONA, isto é, passado, JÁ ERA: substituíram ternos e roupas bem engomadas por jeans desbotados e camisas coloridas; cabelos em brilhantina, por longas madeixas soltas; sapatos engraxados, por chinelos toscos e botas volumosas; saias longas, pela minissaia; linguagem agramaticada, pelo português rico de gírias importadas; a elegância, pela rebeldia; a política tradicional e submissa, pelo protesto de rua; a sociedade de consumo, pelo regresso ao primitivismo tribal(hippie), com roupas e enfeites rústicos e artesanais. Paz e Amor, poesia e sonho movidos a maconha e sem violência.

segunda-feira, 13 de fevereiro de 2012

Carta de um Navegante (*)


CARLOS BRANDÃO

Amigos, presente! Foi! Não foi! Pois vamos!

Bom demais. Nesses dias, sob raios que tocam a fronte de nossa juventude, passamos um tempo distante(s) de relógios. A brisa da felicidade abrandou docemente as vagas do viver, inspirando uma vontade danada de correr mundos.

Na ocasião, ainda sob manhã do agora, aproveitamos a luz dos primeiros sinais para colher os bons ventos da sorte. Conseguimos levantar o apressado das horas da cidade, que, como âncora, nos atracava aos portos da mesmice, por onde transitam aflições da solidão. Livres, espichamos ao sol a gramática do tempo, salgamos as conversas, destravamos as palavras, desfizemos as amarras das narrativas. De bom grado e prumo nas idéias, içamos velas ao benfazejo sopro dos sonhos.

Partimos (navegando) ao acaso indeterminado de navegar, guardando a fé de vencer ilusões. Logo estávamos deslizando ao cimo de uma vista que alcançava a enseada do gerúndio: convivendo em amizades, ironizando a ironia, enfeitando aventuras cheias de encantos. Ao longe, o horizonte dos acontecimentos refletia o infinito das encostas do além.

No entreaberto dos instantes, o olhar do coração reparou que uma vida bem vivida há de desvendar as terras dos gerúndios, particípios ou infinitivos. Mas sempre haverá de saltar dos domínios para festejar novas partidas, louvando e honrando outras imaginações no extenso oceano do tempo. De par com a liberdade, a boa vida caminha sobranceira avançando sobre águas do destino, traduzindo esperanças ao todo do tempo, sem os pesos adverbiais dos ressentimentos. Uma riqueza!

Ah! Nada de cansaços de futuro ou de presente em nosso roteiro. Não, isso não! De presente mesmo, só a ação de estar entre amigos e irmãos, de não contar o tempo em moedas, porque entretidos em enredos mais sublimes. Rumando no sentido do viver, seguimos no balanço das águas de bons mistérios, deixando o indomável do tempo segredar conceitos e assuntos, sem encrespar os fios da vida na crista da idade.

De carona, veio a noite. As estrelas brilharam oferendas ao céu. Aliviado do cotidiano, o espírito brincou a dormir. Madrugou. A natureza cantou um novo dia. Regendo a alvorada, o sol se alongou iluminando a prosa de acordar uma conversa animada. Viajamos sem pressa pela imensidão do tempo, na suavidade de quem vive sem se importar com o entardecer da noite. Singramos sem conferir lembranças do agora e do amanhã.

Foi maravilhoso. Mágico. Em mar aberto da fortuna, não houve enquantos ou outras esquinas do tempo. Apurando felicidades, navegamos livres, em ventos que sopram o destino, na fé de viver o que virá. Pois que venha!

(*) Carlos Augusto Pires Brandão
Juiz Federal e Professor da Universidade Federal do Piauí
Mestre em Filosofia e Teoria do Direito pela UFPE
Doutorando em Sociologia Jurídica e Instituições Políticas pela Universidad de Zaragoza (Espanha)

AMOR CIGANO



AMOR CIGANO

Elmar Carvalho

A cigana jogou as cartas da sorte
e leu afagando as linhas tortuosas
que sulcam a palma de minha mão.

Falou sussurrando
de ascensões e naufrágios
entrevistos nos presságios.

Prometeu um grande amor
que breve encheria meu vazio coração.

Enfeitiçou-me e se evadiu
por ondulosas colinas
cheias de margaridas e rosas,
eritrinas e neblinas.

E me deixou repleto o coração
apenas de urtigas e saudade
a cigana leviana que leu
e releu a palma de minha mão.

domingo, 12 de fevereiro de 2012

Adriano Lobão: a poética da renovação


Francisco Miguel de Moura

Adriano Lobão Aragão, jovem de ar tímido e ensimesmado, é um poeta talentoso e dele muito se espera. Certamente, dele muito se ouvirá falar na literatura. No momento, refiro-me ao livro recente, As Cinzas as Palavras, Edições Amálgama, Teresina, 2009, onde prossegue na sua linha de aprofundamento nos clássicos - antigos e modernos – e o faz com uma poética crítica e com sabor de atualidade. Conta com outra roupagem, aquilo de que a poesia da modernidade mais gosta: a intertextualidade e aintratextualidade, traduzindo seu mundo em poesia, com discursos e sensações perpassados por outros. 

Cabe aqui uma digressão: Após o advento da obra póstuma Cours de Linguistique Generale, de Ferdinad de Saussurre (1857-1913), resultante de cursos dados aos seus alunos A. Ridlinger, Charles Bally e Albert Sechehaye, a Lingüística torna-se o estudo científico da linguagem, quando é feita a separação entre língua e fala, sendo esta o ato individual e, portanto, sujeito a fatores externos, e aquela, um sistema de valores que se opõem uns aos outros e que está depositado como produto social na mente de cada falante de uma comunidade, com homogeneidade. Mas Lingüística e Gramática não brigam, convivem no mesmo escritor, com sabedoria como faz Adriano Lobão.

O estabelecimento da Lingüística é o começo da modernidade poética, os poetas de então ganham novas formas de libertação, não mais sendo obrigados a simplesmente repetir metáforas e metonímias. O uso de tudo o que a literatura imprimiu até então enriqueceu o consciente e o inconsciente coletivos, para as variações mais estranhas, às vezes chegando ao obscurecimento do discurso. Derivadas da ciência linguística surgem aintertextualidade e a intratextualidade, ambas já usadas nos discursos clássicos, porém de forma disfarçada.

Na poética de Adriano Lobão não faltam intertextualidades eintratextualidades. A leitura do poema Uns versos (pg.15), tornam suficientemente claras minhas afirmações: “entre linha limpa descanso sutil não se desdobra / claro enigma em superfície inerte paz abandonada / o inexato revelar de obscuras possibilidades” (e segue em todo o poema). Isto já era comum, no Brasil, a partir da Geração de 45, de onde vem H. Dobal. Mas, nas suas últimas obras, Dobal parte para uma temática e um texto mais natural, aproximado da terra e do pensamento contemporâneo de satisfação imediata. O poema Há ainda este tempo,que começa o livro de Adriano Lobão, é muito característico do discurso da citada geração e da geração do Caetano e Torquato Neto, por exemplo.

Encontramos, assim, as causas da proximidade do signo do historicismo, com outro, o da modernidade, através de seu discurso interpolado e enfático nas metáforas com metonímias, nas sinestesias com cenestesias. Tudo isto já existia na poética barroca, como vemos no poema As odes os signos, de Adriano Lobão, o que não havia era a sociedade moderna, agora entrelaçando toda a literatura:

estas odes que aqui se erguem como estranhos obeliscos
emanam como desencanto louvando o próprio canto
palavra perdida lançada em busca de alheio signo

este verbo disperso em distante campo de poeira
areia estéril onde não canta tágide nem musa
estância onde não se encontra em seus cantos engenho e arte

nem alegre lembrança vestida de esquecidas ânsias
nem rústico altar profano onde sem música se dança

aquém dos verbos de outrora além dos versos de amanhã

decantados em prosa elegia e hino assim recordam
estas odes aqui erguidas em busca de signo alheio.

A pequena diversidade na matéria/conteúdo dos seus livros vai por conta de um estilo maturado na substância história principalmente. Poemas bem construídos, com cheiro e sabor dos clássicos, baseados em altas leituras. O autor é professor de literatura, adivinha-se: - basta que analisemos o mundo de antíteses e paráfrases, referências e alusões, sem falar na tônica inversões/invenções... Por tudo isto e por muito que não é possível ser dito aqui, Adriano Lobão Aragão é um dos melhores poetas da geração Amálgama, deste século XXI, um milenista como diria Herculano Moraes.

Fonte: Kenard Kaverna

sábado, 11 de fevereiro de 2012

Enfim, a consagração


Cunha e Silva Filho

As três cidades que amou por igual: Amarante, Teresina e Rio de Janeiro. Está sepultado na primeira desde 1990. Não tem lápide, não tem sepultura de luxo nem tem epitáfio. Apenas ali, em meio à grama que cresce, se encontram seus restos mortais. Ele é de 1905, conforme ele mesmo me confessou em vida -, embora algumas notas biográficas de dicionários e histórias literárias piauienses registrem a data de nascimento em 03 de agosto de 1904. No Arquivo de ex-alunos do Colégio Salesiano Santa Rosa, em Niterói, estado do Rio de Janeiro, no qual ingressou como aluno em 1920, consta, porém, que o nascimento dele, segundo os documentos apresentados ao famoso educandário, traz a data de 1904. Ficam, pois, a minha há dúvida e a alegação do testemunho que me deu quando completara 80 anos.
Resolverei em parte esta dúvida quando consultar os registros de nascimento em Amarante. Só vim a ter essa dúvida porque, pensando que tivera completado 80 anos, lhe fizera, sem o avisar, um longo artigo homenageando-lhe os oitenta anos, i.e., em 1984. O artigo, publicado no extinto jornal “Estado do Piauí’, de Teresina, do editor Josípio Lustosa, tinha por título o seguinte: “Cunha e Silva :80 anos.” Dias depois, recebo carta de papai, na qual me apontava o erro de data de nascimento: “Meu filho, eu sou de 1905.” Contudo, não me dera maiores explicações para essa questão. Homenageado fora por antecipação de um ano. Vá lá. O importante era a minha intenção.
A meu pai estive muito ligado dentro e fora de casa, já que fora meu professor de francês durante três anos no Domício, nome pelo qual era conhecido um antigo colégio particular de Teresina, o Ginásio “ Des. Antonio Costa”, dos irmãos Magalhães, Francisco Melo Magalhães e Domício Melo Magalhães, grandes educadores que fizeram história.
Quando pequeno, papai sempre me encarregava de buscar as provas de artigo, na época em que escrevia para o jornal O Dia, de Mundico Santilho (?). As “provas de artigos” eram para meu pai fazer a revisão, pois sempre escapava um erro do linotipista e meu pai era exigente em questões de revisão. Lia cuidadosamente o artigo já impresso. Fazia um sinal em v inter-palavras e acrescentava as correções a tinta. Não me lembro agora se, no mesmo dia da correção, eu voltava para a redação. Papai, em casa, me falava do Mundico, que tinha um defeito num dos braços. Era um senhor gordo, baixo, calvo, claro. Dele me contava papai que, na mocidade, fora bem apessoado. Só depois de uma doença perdera a antiga boa aparência. Tinha passado um tempo na Alemanha. Não sei com que propósito. Parecia ser um homem inteligente e sério. Sempre me tratara bem. Muitas vezes, pequeno, fui à redação de O Dia apanhar as saudosas “provas de artigos’, como costumava chamar papai.
Grande jornalista político, Cunha e Silva, nome literário com o qual assinava seus numerosos artigos, talvez tenha sido no Piauí, no seu tempo, o jornalista que maior quantidade de artigos escreveu em jornais.
Na época em que eu já era adolescente, ele se indispôs com o professor, jornalista e cronista A. Tito Filho e com este travou uma polêmica acirrada de parte a parte, mas meu pai, no terceiro artigo contra o adversário, encerrou a polêmica, porquanto A. Tito Filho não aguentou o talento de exímio esgrimista e a veia satírica e demolidora de papai. Se não me engano, a polêmica foi publicada, de parte a parte, no mesmo jornal, acho que nO Dia. Os leitores, ex-alunos de um e de outro, acompanhavam com ansiedade o que um dizia em detrimento do outro. Na minha rua, a Arlindo Nogueira, havia umas jovens que tinham sido alunas do A. Tito Filho - que os alunos chamavam de Arimathéa ou professor Arimathéa. -, as quais eram fãs dele. Eu, de minha parte, torcia pelo nocaute de meu pai e saía exaltado em defesa de papai.
Ora, para defender papai não havia ninguém melhor do que eu, que mesmo cheguei a me intrigar com um vizinho de outra rua próxima, a São Pedro, outro admirador do professor. Arimathéa. Para mim, papai era o melhor, o mais duro nas verrinas, um pulverizador implacável do seu êmulo.Papai tinha mais preparo geral, memória portentosa, conhecia latim, francês, italiano, uma boa base de inglês, filosofia, história universal, geografia, imensa leitura do que havia de melhor em autores literários. Alem isso, tinha uma sólida leitura em temas sociais e políticos, o que muito o ajudava a se tornar um jornalista bem equipado em vários eixos do conhecimento humano. Até em matemática fora bom. Apreciava todas as ciências, tinha o progresso em altíssima conta, leitor incansável , a ponto de um sobrinho dele uma vez me dizer: “Meu tio Chiquinho (nome carinhoso entre os familiares), sempre que o ia visitar em casa, adivinhe como eu o encontrava: lendo!” Essa era a imagem que tinha de meu pai.
Todos esses registros e anotações sobre meu pai me vêm à baila em decorrência de três estudantes do Piauí, dois estão fazendo o mestrado na UFPI, uma na área de História, outro na de educação e uma outra também em história, em trabalhos de monografia. Todos me procuraram a fim de obterem informações e material sobre Cunha e Silva. A todos tenho atendido com alegria e gratidão dentro de minhas possibilidades de recursos materiais que guardo de meu pai.. Não mais posso oferecer a esses pesquisadores porque não tenho toda a sua produção jornalística , só uma pequena parte, que venho guardando ao longo de vários anos e que compreendem sobretudo recortes de artigos de jornais das décadas de sessenta ao final da década de oitenta. Além disso, disponho de um bom número de poemas, a maioria deles na forma de soneto. De sua obra publicada tenho a tese dele – defendida - para professor catedrático de história do Brasil da Escola normal Antonino Freire, A odisséia do cativeiro no Brasil (Teresina, Imprensa Oficial, 1952, 60 p.), uma outra tese, O papel de Floriano Peixoto na obra da proclamação e consolidação da República(1957), apresentada à cátedra de História do Brasil do Liceu Piauiense (Colégio Estadual “Zacarias Góis”), que acredito não foi defendida, A república dos mendigos (novela), publicada no Rio de Janeiro, em 1984,135 p. pela Folha Carioca Editora Ltda, com orelhas e brevíssima apresentação deste colunista, Copa e cozinha ( Academia Piauiense de Letras/Projeto Petrônio Portella, Teresina, 127 p.), sátira política local, memorialismo, e ensaios políticos. Dele ainda há um livro, até hoje, inédito, de título Gatos de palácio, igualmente uma sátira da política local.
O espólio do grosso da produção de meu pai em jornais e revistas por ele reunido em décadas de atividade na imprensa, constava de pelo menos dois ou três caixotes de papelão. Por descuido e falta de empenho de meus irmãos, parece que foi perdido, o que é de se lamentar profundamente agora que alguns jovens pesquisadores piauienses, certamente orientados por seus professores, recomendaram estudos sobre meu pai e com isso aquele arquivo pessoal seguramente teria muitíssimo a abreviar o trabalho exaustivo que é o de se debruçar sobre velhos e poeirentos jornais da Biblioteca Pública do Piauí e do Arquivo Público. Confesso, leitor, eu era o fiel e rigoroso “warder”dos livros de meu pai. Conhecia todos os que compunham duas estantes antigas, com obras valiosas de literatura universal, livros de gramática, excelentes dicionários em três línguas, história, filosofia, literatura, política, sociologia, livros didáticos de grandes autores do passado etc.
O professor Cunha de Silva, o acadêmico imortal da APL, o jornalista político, o poeta, o contista (ele fez alguns contos), o bom resenhista de livros, o orador, o polemista, o educador e o homem de coragem que sempre foi, o bom pai, bom avô, o bom amigo, o amigo dos seus incontáveis alunos, tanto em Amarante, quanto em Teresina, conquistou um nome consagrado na vida intelectual do Piauí. Ele morreu sem saber que a sua obra e o seu exemplo de escritor, vinte anos depois, seriam recuperados e reconhecidos dentro dos muros da universidade que, através de alguns estudiosos, estão situando-o no destacado lugar que o valor de sua obra sempre mereceu. A posteridade, finalmente, lhe esta fazendo justiça. Que seu valor e sua lembrança perdurem para sempre.

sexta-feira, 10 de fevereiro de 2012

DIÁRIO INCONTÍNUO


10 de fevereiro

A ÚLTIMA PORTA DA ESPERANÇA

Elmar Carvalho

Na conversa a que me referi, no registro anterior deste diário, expliquei aos servidores da Comarca, que quando um jurisdicionado bate à porta da Justiça, geralmente, é porque já tentou resolver o seu problema através de vários modos, tais como cobrança extrajudicial, lembrete, diálogo, intermediação de amigos e parentes comuns, que funcionam como uma espécie de juízo arbitral ou como conciliadores, sem alcançar um resultado satisfatório.

Muitas vezes essas pendengas são coisas miúdas ou pelo menos assim legalmente consideradas, como litígios de vizinhança, ameaça, injúria, calúnia, difamação, barulho, rixas, pequenas dívidas, mas que, na maioria das vezes, só encontram solução quando a parte que se sente prejudicada ingressa no Poder Judiciário. Outras, são de maior monta, como a perseguição administrativa, por motivação de baixa política, de eventual gestor público atrabiliário contra modesto e hipossuficiente barnabé, em acintoso desrespeito ao princípio constitucional da impessoalidade.

Muitas dessas questões terminam em acordo, porém somente após o ajuizamento da ação, porquanto o infrator, que se mostrava recalcitrante e refratário a conciliação, temendo as provas documentais, testemunhais e o decisum do magistrado, termina cedendo, ante a possibilidade de sofrer maiores prejuízos advindos de possível sentença desfavorável. Dessa forma, lhes mostrei a importância de nosso trabalho para a pacificação social, mediante a solução dos conflitos, e lhes exortei, na medida do possível, a se esforçarem ainda mais, posto que todos são esforçados e têm boa-vontade.

Invocando o excelso poeta Dante, que disse haver uma tabuleta nos umbrais ou ante-sala dos domínios infernais, expressando que ali cessava toda Esperança, lhes disse que o jurisdicionado bate à porta do Judiciário como se ela fosse a última porta da esperança. E é, pois como já falei, a pessoa que se sente prejudicada ou ameaçada de sofrer prejuízo, normalmente, antes de adentrar o solar da Justiça, já tentou várias formas de resolver o conflito que lhe aflige, até porque, muitas vezes, as ações têm custas iniciais a serem pagas, existem os honorários advocatícios e despesas outras, como honorários do perito e do assistente, além do desgaste da, muitas vezes, longa tramitação processual, por vários motivos, entre os quais recursos protelatórios, incidentes processuais, como diligências e perícias, mudanças de endereços de testemunhas, eventuais doenças, acúmulo de serviço por causa da escassez de pessoal, etc., que incentivam o postulante a tentar resolver seu imbróglio antes da propositura da demanda.

Ante esse quadro que descrevi, solicitei mais empenho, porquanto reconheço que o público não tem nenhuma culpa de eventual desaparelhamento do Estado-Juiz. São falhas que se acumularam ao longo de décadas e décadas, e que não podem ser equacionadas em pouco tempo, sobretudo diante da exiguidade orçamentária do tribunal. Obviamente, o esforço individual que pedi tem limite, e esse limite é a nossa própria condição humana. Mesmo porque reconheço que os servidores de minha comarca são dedicados e vontadosos, mormente observadas as condições de que dispomos. Já se esforçam e se dedicam até mais do que é razoável esperar. Nada lhes podendo oferecer, além de minha gratidão e reconhecimento, dedico-lhes estas palavras, que hão de valer por uma certidão de honra ao mérito, embora sem presunção legal de veracidade. 

quinta-feira, 9 de fevereiro de 2012

DIÁRIO INCONTÍNUO



9 de fevereiro

ÓCIO E TRABALHO

Elmar Carvalho

No primeiro dia, após o retorno de minhas férias, fiz reunião com os servidores de minha comarca, para a preleção inicial dos serviços correicionais do corrente ano. Disse-lhes e a mim mesmo, que o trabalho é uma bênção para os que gostam do que fazem, e uma quase maldição para os que trabalham apenas por obrigação, pela necessidade de seu salário mensal. Talvez, pensando nestes últimos, Deus, segundo a Bíblia, após a expulsão do homem do paraíso, dissera: “Comerás o pão com o suor de teu rosto”.

Dessa advertência divina, podemos inferir que no Éden os humanos não precisariam trabalhar. Alguns poderão concluir que o trabalho não seria uma coisa boa, uma vez que não existiria no paraíso perdido. Outros dirão que, apenas não haveria necessidade do labor, porquanto o espaço edênico era perfeito, com frutos e outros alimentos em abundância. De qualquer sorte, creio que o homem teria o trabalho de pelo menos colher os frutos. Também me é lícito supor que, sendo o homem perfeito, não haveria ganância; e, como não havia escassez, o homem não precisaria acumular as provisões em celeiros. Logo, a labuta da colheita deveria resumir-se a saciar a fome do momento, pelo que não haveria serviço estafante.

Nesse aspecto, seguindo essa linha de raciocínio, o nosso indígena sofre difamação, quando chamado de indolente e preguiçoso. Tendo ele, na época do descobrimento, uma agricultura rudimentar e praticamente não realizando a domesticação de animais e não tendo criatórios, sobrevivia apenas do extrativismo vegetal e da caça e da pesca. Não sabendo conservar os alimentos e não tendo maiores ambições, os índios não precisariam de celeiros nem de depósitos para acumulações desmedidas de coisas. Por essa razão, um espírito algo romântico poderia entender que os nossos silvícolas vivessem numa espécie de paraíso, já que não realizavam serviços de longa e extenuante jornada. De qualquer maneira, entendo que o ócio – não a preguiça – é importante, pois através dele, muitas vezes, é que o artista e escritor concebem a sua arte e a sua produção intelectual. Paulo, não o Apóstolo dos Gentios, mas o de Athayde Couto, disse: “Em busca do que fazer, lazer”. Na quietude do corpo, não raras vezes, o cérebro trabalha arduamente, até quase a exaustão.

Ocorre que os alimentos, em certas épocas e em certas regiões, eram escassos. Ocorre que os índios adoeciam, envelheciam e morriam; e sem dúvida, essas mazelas lhes entristeciam e lhes causavam preocupações, seja quando sentidas na própria pele, seja quando a vítima era um ser amado. E a Bíblia e os sábios teólogos nos dizem que no Éden não existiam sofrimento, nem doença, nem morte, nem tristeza e nem fome, posto que havia abundância e o homem era sem pecado, sem vícios e imortal. Dessa forma, para os nostálgicos do suposto paraíso brasileiro, os colonizadores destruíram o nosso Éden tropical. Para esses, o Brasil ainda deveria ser uma imensa selva intocada, com índios nus ou vestidos apenas com uma tanga sumária.

Acontece que os indígenas tinham arco e flecha, além de outras armas, como o tacape. Acontece que as tribos rivais brigavam entre si. Ainda hoje, em países atrasados, vemos, pela televisão, as guerras tribais. Logo, não há negar, índios matavam índios. Havia até os canibais ou antropófagos que devoravam carne humana. Quem não conhece o episódio famoso do bispo Sardinha? E consta que no jardim do Éden havia paz e beatitude. Portanto, a situação descrita não poderia configurar uma espécie de paraíso, sobretudo no molde do edênico. É claro que houve muitas atrocidades no nosso processo de colonização. Entretanto, os colonizadores de qualquer pátria as cometeram, uns mais, outros menos, sejam eles de Portugal, França, Holanda, Espanha, Inglaterra; isso para não falarmos nas barbaridades das guerras de conquista da idade antiga, e até mesmo de certas guerras ditas religiosas dos dias hodiernos.

Algum leitor impaciente, achando-me um tanto retrógrado e conservador, coisas que não o sou, deve estar a perguntar-se aonde quero chegar. Respondo: a lugar nenhum. Estou apenas tentando dizer que neste planeta não temos paraíso e nem homens perfeitos; que, por onde quer que vaguemos, em desertos de gelo ou de areias escaldantes, ou nas megalópoles regurgitantes de gente, conduziremos os nossos problemas, arrastaremos as nossas preocupações, os nossos fantasmas, as nossas indagações irrespondíveis e as nossas angústias existenciais.

Quero apenas dizer que a sociedade humana e o homem individualmente são sempre cheios de complexidades; que se o Brasil não tivesse sido “achado” pelos portugueses, o teria sido por outras nações, que de qualquer modo aqui aportaram, antes e depois dos portugueses. Quero somente dizer que somos o cadinho de várias raças e costumes, e que não existe nada que possamos fazer para mudar esse fato histórico. Aceitemos a realidade de nossa rica e diversificada cultura e miscigenação, e vivamos em paz com nosso semelhante, com nosso próximo e irmão.

Quero deixar claro que este registro terminou tomando um rumo totalmente inesperado, que eu não havia de modo nenhum planejado. Que, na minha conversa com os serventuários da Justiça, me restringi exclusivamente a falar da importância de gostarmos de nosso trabalho, de procurarmos gostar do que fazemos; de nos sentirmos felizes no cumprimento de nossos serviços, mesmo porque Cristo disse que “Se alguém quiser ser o primeiro, há-de ser o último de todos e o servo de todos”.

Por fim, lhes exortei que, na nossa velhice, já aposentados e algumas vezes entediados, talvez venhamos a ter saudade dos tempos do labor público, em que éramos procurados pelas pessoas, em busca de solução para os problemas que lhes afligiam, em que éramos úteis, necessários, e por vezes imprescindíveis, naquele momento e naquele posto e mister. Portanto, sirvamos. E sirvamos da melhor forma que pudermos. E, enfim, como bons servos, nos regozijemos em servir.

quarta-feira, 8 de fevereiro de 2012

ENCONTRO POÉTICO NA OFICINA DA PALAVRA

QUATRO POETAS DO PIAUÍ


A FLAUTA, O PASTOR, A MÚSICA

Clóvis Moura

Havia uma pequena pedra
que ouvia música.
Todos os dias o pastor com a sua flauta
sentava-se à sombra da árvore sem nome
e humanizava a pedra
com os sons do instrumento.

(No entanto, um dia passaram
cavaleiros com lanças e bandeiras:
o pastor sumiu, desapareceu o seu rebanho.)

Somente a pedra que ouvia música
lembra-se do pastor, da sua flauta,
da música.

E da paz que ela trazia aos seus ouvidos.

Extraído de LB – Revista da Literatura Brasileira, nº 6

terça-feira, 7 de fevereiro de 2012

TODA REGRA TEM EXCEÇÃO

Foto meramente ilustrativa

JONAS FONTENELE
Advogado e professor

Mãe é uma instituição, não nacional, mas mundial. Como diz o ditado: mãe só se tem uma. Apesar de ter perdido a minha muito cedo , desde menino, aprendi que com mãe não se brinca. Falar mal da mãe dos outros era briga na certa, mesmo com quem já não tinha, como era o meu caso. Mãe é intocável. Aprendi também que mãe defende o filho, não importa que filho, ele pode ser considerado ser humano da “pior espécie”, mas sua mãe o ama e sempre o canalha, o bandido, o sem-vergonha é o filho da outra, como se ele – o filho da outra − também não tivesse mãe. Mãe é tão importante que no calendário, tem um dia dedicado especialmente a ela. Por esta razão, esta narrativa deveria ter sido publicada no mês de maio, mas, ao final, você caro leitor, vai entender que tudo na vida tem exceção, e, infelizmente, a instituição MÃE, não é a única exceção.

Quis o velho destino me empurrar para o exercício de uma profissão que me obriga procurar entender o ser humano. Tarefa mais do que espinhosa, cheguei à conclusão de que após vinte e três anos de formado, na verdade é tarefa impossível.

Formado em direito, iniciei minha atividade profissional na área trabalhista. Em seguida, incursionei na área cível e, por fim, descobri que gostava mesmo era da área criminal que no meu entender ali estava o ser humano na sua essência. É na área criminal que você se depara com o ser humano verdadeiro, não importa o sexo, profissão, cor ou credo. Na área criminal você descobre a verdade nua e crua, a razão do erro, e quem é digno da existência. Fixei-me, então, na área criminal.

Como diz o ditado, vi coisas que até Deus duvida. Para ilustrar esta nossa conversa, conheci um rapaz que era o código penal ambulante, respondia processo acusado de estupro, homicídio, lesão corporal, roubo, furto, atirava bem com as duas mãos, e enfrentava a polícia constantemente. Foi preso porque sua mãe pediu-lhe que se entregasse. Carregava no braço a tatuagem “EU AMO MAMÃE’. E como não poderia deixar de ser, deparei-me com a instituição MÃE em todos os processos. Mãe é aquela que nunca acredita que o filho fez algo errado, sempre foram os outros ou por influência destes.

Um belo dia, ao sair à noite do Forum de Taguatinga, deparei-me com um amigo de longa data, também advogado, amigo daqueles que a gente não pode dizer não, que me fez um pedido surpreendente: Fazer um júri pra ele no dia seguinte. Aquilo era impossível. Júri é um processo complicado, complexo, necessita de um estudo mais aprofundado, não é processo de se estudar de um dia para o outro, mas o meu amigo estava em desespero, o julgamento seria no dia seguinte e ele, além de não ter estudado os autos, não tinha nenhuma experiência no Júri. O pavor estava estampado na cara. Eis um caso de vida ou morte. Então resolvi ajudá-lo. Estudaria o processo a noite inteira, para, na manhã seguinte, defender o cliente do amigo.

Levei cópia dos autos e passei a noite me aprofundando no caso: era um homicídio, onde o agora nosso cliente, havia matado um desafeto atravessando-lhe uma faca peixeira na altura do coração. Situação difícil a do cliente, e para piorar, a mãe da vitima chegara no momento e amparou o filho que faleceu em seus braços.

Como desgraça pouca é bobagem, a mãe da vítima, que sumira da cidade logo após o homicídio, reaparecera e iria testemunhar pela primeira vez no autos, perante o corpo de jurados. Pensei comigo: pobre do meu cliente, a mãe vai depor e contar tudo sob a ótica materna, aquela de que todos outros são maus, exceto o “santo” filho. Vai sensibilizar os jurados, pois estava na cena do crime, tudo vira e podia contar o fato diferente do que acontecera, tudo no sentido de piorar ainda mais a situação do meu cliente. Passei a noite imaginando como meu cliente iria se sair desta, afinal, pensava com os meus botões, Mãe é mãe. Vai chorar no plenário, fazer o papel de mãe que todos sabemos como é.

O dia amanhece. Dirijo-me ao local do julgamento, sabendo qual seria o resultado, pois não vislumbrava uma saída satisfatória, diante daquela situação. Audiência aberta, promotor sorrindo, satisfeito com a descoberta da mãe a tempo de arrolá-la como testemunha de acusação, inicia-se o julgamento com a oitiva do acusado, que informa que não teve outra alternativa , senão ter que matar a vitima, que após a vítima tê-lo espancado por duas vezes, invadira seu barraco para espancá-lo pela terceira vez. Única testemunha, a mãe da vitima é chamada a depor. Pensei: agora é o fim. Para que você leitor tire as suas conclusões, eis aqui, parte da inquirição.

Juiz: A senhora viu tudo, conte como aconteceu.
Mãe: O meu filho já havia espancado o acusado duas vezes, e depois mesmo eu tentando impedi-lo, ele foi até o barraco do acusado e após invadir o barraco e tentar estrangular o acusado, sofreu o golpe, que o matou.
Juiz: O seu filho, como ele era?
Mãe: Doutor, graças ao nosso bom Deus, ele se foi. Era um sem coração, batia em todo o mundo, roubava, já havia tentado matar várias pessoas. Olhe hoje eu me sinto aliviada, pois ele era uma dor de cabeça só.
Juiz: E o acusado, a senhora conhece?
Mãe: Claro, é um homem bom, trabalhador, não faz mal a ninguém, isso que aconteceu, foi uma tragédia, eu mesma se estivesse no lugar dele teria feito a mesma coisa.

Espanto geral. Acusação, Juiz, a defesa, os jurados, a platéia, todos se surpreenderam. Ninguém, absolutamente, esperava aquele depoimento. Achei inédito, uma mãe falar a verdade sobre o próprio filho e elogiar aquele que o matara. É óbvio que meu cliente foi absolvido. Concluindo: toda regra tem exceção, até mesmo a instituição Mãe.

Os remédios para a paixão



ROBERTO VELOSO

Na semana passada escrevi sobre a paixão enquanto doença. Os médicos assim a tratam, porque causa muita dor, sofrimento e ansiedade. A não correspondência, que é a sua principal característica, pode provocar a combinação irresistível de ciúme, sentimento de perda e raiva, os quais ativam a produção de substâncias químicas não prazerosas, em especial o cortisol, que é o hormônio do estresse.
Nesse caldo de sentimentos negativos acontecem os atos impensados, como sequestros, agressões físicas e homicídios. Esse tipo de comportamento pode ser definido como obsessivo, quando se deseja desesperadamente uma pessoa. A sensação de rejeição provoca intensa necessidade de posse, o que provoca irritação e raiva no outro, essa espiral incontrolável chega ao limite da tentativa de controle físico.
Do ponto de vista psiquiátrico o tratamento engloba medicação e, principalmente, psicoterapia, mas não será sobre tais procedimentos que falarei neste artigo. Minha intenção é tratar dos remédios naturais para o amor. Os remédios que, acaso existentes, arrefecem ou curam o “suposto” amor.
Para mim, quem melhor tratou sobre o tema foi o padre Antonio Vieira, nascido na Cidade de Lisboa, em 6 de fevereiro de 1608, e falecido na Cidade de Salvador, em 18 de julho de 1697. Foi um dos maiores oradores sacros de todos os tempos. Chegou ao Maranhão em 1653, onde proferiu um dos seus mais importantes sermões, o do Santo Antonio aos peixes.
Quando tratou dos remédios para o amor, o fez em Lisboa, no Hospital Real, no ano de 1643. Vieira diz que os remédios do amor mais eficazes e poderosos existentes na natureza, aprovados pela experiência e receitados pela arte, são o tempo, a ausência, a ingratidão e o melhorar de objeto, todos tem o poder de acabar o amor humano, mas não o divino, proveniente de Jesus. Falarei agora sobre todos, a partir da experiência humana.
O primeiro é o tempo. Segundo Vieira, tudo cura o tempo, tudo faz esquecer, tudo gasta, tudo digere, tudo acaba. Nem as colunas de mármore e os prédios de granito resistem ao tempo, quanto mais os corações humanos. O tempo tira a novidade às coisas, descobre-lhe os defeitos, enfastia-lhe o gosto. Abre-lhe os olhos e passa a ver o que já não via.
Se o tempo faz tanto efeito sobre o amor, é porque o amor humano é fraco, inconstante, na verdade não é amor. Para o orador sacro, no amor, o deixar de ser é sinal de nunca ter sido. “O amor que não é de todo o tempo, e de todos os tempos, não é amor, nem foi; porque, se chegou a ter fim, nunca teve princípio”.
O segundo dos remédios é a ausência. Ao se despedirem dois amados, demonstram grande afeto, palpitam os corações de saudades, rebentam os olhos de lágrimas, saem da boca os suspiros. No entanto, depois os olhos estão enxutos, a boca muda e o coração sossegado. A maior das ausências é a morte, porque separa definitivamente, sequer existe a possibilidade de um novo encontro, em vida.
O terceiro dos remédios é a ingratidão e talvez o mais eficaz. O tempo diminui o amor, a ausência esfria o amor, mas a ingratidão transforma o amor em raiva e aborrecimento. A mais grave das sentenças é privar o amor ao ingrato. Segundo Vieira, o tempo tira ao amor a novidade, a ausência tira-lhe a comunicação, a ingratidão tira-lhe o motivo.
O quarto dos remédios para o amor é a melhoria de objeto. Expressa-o a frase: um amor com outro se apaga. Assim como dois contrários não cabem em um mesmo sujeito, dois amores não cabem em um só coração. Vieira se utiliza de um exemplo bíblico para explicá-lo.
Diz ele, que entre as injustiças que o rei Saul cometeu contra David foi negar-lhe a princesa Micol, dando-a a Faltiel. Recebendo David a coroa de Israel, a primeira providência que tomou foi pedir que Micol fosse restituída. Isboseth, filho de Saul, foi buscar a Micol. Faltiel entregou Micol chorando, mas esta não derramou uma lágrima.
Faltiel chorava em razão da perda de Micol, mas Micol não chorava justamente porque trocava a Faltiel por David. Micol não chorava porque já não amava Faltiel, e não amava porque melhorou de objeto.
Todos esses remédios, o tempo, a ausência, a ingratidão e a melhoria de objeto, são naturais, se servem para o amor, muito mais para a paixão. Assim, não há necessidade de desespero e de angústia para as paixões não correspondidas, basta que se tome uma das atitudes ao alcance, deixe o tempo passar, se ausente ou melhore de objeto.

Roberto Veloso é presidente da Associação dos Juízes Federais da 1ª Região.

segunda-feira, 6 de fevereiro de 2012

Carnaúba perde o seu maior defensor


Zózimo Tavares
Jornalista e membro da APL

O empresariado piauiense está de luto. Faleceu ontem, aos 70 anos, o empresário Antônio Machado, 70 anos. Ele não resistiu às complicações renais e morreu na madrugada, de insuficiência respiratória, tomando a todos de surpresa, especialmente os que conheciam mais de perto o seu
trabalho e reconheciam a sua luta sem trégua.
Antônio Machado era cearense de Santa Quitéria. Ainda jovem, decidiu investir num negócio que deixara de ser um bom negócio no Piauí: a cera da carnaúba. Mas ele acreditou nela até o fim. À carnaúba, dedicou toda sua vida comercial e todos os seus esforços, contribuindo
para que o Piauí figurasse entre os maiores exportadores do produto no Brasil.
Incontáveis vezes, sofreu e enfrentou os revezes próprios do comércio internacional, diante dos altos e baixos do dólar e também das subidas e descidas repentinas e assustadoras do preço da carnaúba. Porém, nunca desanimou. Negociava com diversos países. Tinha em sua carteira clientes de décadas.
Fundou o Centro dos Exportadores do Piauí. Através dessa entidade,além de lutar por políticas favoráveis ao desenvolvimento do setor e acompanhar o comportamento do mercado, abraçou a causa do Porto Seco.
Foi um sonho que não conseguiu realizar, embora tenha lutado pelo menos 15 anos pela sua concretização.
Machado, como era mais conhecido, atuou também na área da comunicação.
No início dos anos 90, ele comprou a Rádio Difusora de Teresina. Investiu maciçamente na emissora e depois se desfez do negócio, passando a rádio para um ex-empregado seu, o jornalista Mário Rogério,
seu atual diretor.
Como resumiu o jornalista Cláudio Barros, ao lamentar o prematuro falecimento do empresário, "a morte de Antônio Machado deixa grande lacuna no rol dos homens de bem do Piauí".
Ser um homem de bem, dedicado à família, ao trabalho e aos amigos, foi sem dúvida o que o diferenciou entre seus contemporâneos e o fará viver na lembrança e na saudade dos que privaram de sua amizade.


(Publicado no Diário do Povo, em 01.02.2012)

MARQUÊS DE PARANAGUÁ


Jesualdo Cavalcanti Barros*

A Academia Piauiense de Letras, em cumprimento da missão de realçar e preservar nossos valores, prepara-se para celebrar o Ano Marquês de Paranaguá, patrono da cadeira nº 18, atualmente ocupada pelo acadêmico Herculano Moraes. A iniciativa assinala o transcurso do centenário de falecimento de João Lustosa da Cunha Paranaguá, segundo visconde e marquês de Paranaguá, ocorrido no Rio de Janeiro, em 9 de fevereiro de 1912.
Pretende o sodalício, durante 2012, por meio de palestras, encontros e debates, sensibilizar a sociedade piauiense e suas instituições culturais e educacionais, para um amplo estudo da vida e da obra do preeminente coestaduano, por certo o maior de todos, embora pouquíssimo conhecido nestas plagas de tanto desleixo com sua cultura, valores e memória histórica. A programação terá início às 10 horas do próximo dia 11 (sábado), no auditório Wilson de Andrade Brandão, na Academia, quando falará  sobre o homenageado o jovem diplomata correntino Marcus Henrique Paranaguá, até há pouco servindo no consulado brasileiro de Nova Iorque (EUA).
Paranaguá nasceu na fazenda Brejo do Mocambo, nos remotos sertões de Parnaguá, “aquela espécie de nação Gurgueia” de que fala Fonseca Neto, em 21 de agosto de 1821. Sobre esse sítio diria o ouvidor Antônio José de Morais Durão, em sua Descrição da Capitania de São José do Piauí, relatório de inspeção que realizou nas vilas piauienses, em 1772: “com 42 moradores, que fazem um povo mais numeroso que a própria vila, da qual dista 12 léguas ao mesmo rumo, mas nem nome tem de aldeia, nem juiz ou justiça, ao passo que se aumenta em cultura e negócio.” Na vila de Parnaguá, instalada pessoalmente pelo governador João Pereira Caldas havia dez anos, despertou a atenção do ouvidor a saúde de seus moradores, graças aos bons ares, tanto que encontrara, nos 29 fogos em que se distribuía sua diminuta população, nada menos de três homens em avançada idade: um com 110 anos, outro com 112 e o terceiro com 120.
Com a opulência gerada pela criação de gado, não admira que da velha fazenda  tenha surgido nada menos de 40% da nobiliarquia piauiense (o marquês com dois títulos e mais os irmãos – barões de Paraim e de Santa Filomena), no total de dez títulos para oito agraciados.
Paranaguá bacharelou-se na antiga Faculdade de Direito de Olinda, em 1846. Seguiu o exemplo de outros piauienses futurosos, que brilhariam dentro e fora da província, dentre os quais Francisco de Sousa Martins, Francisco José Furtado (perseguido, concluiria o curso em São Paulo), Casimiro José de Morais Sarmento, Marcos Antônio de Macedo, Antônio Borges Leal Castelo Branco, Antônio de Sousa Mendes e Antônio de Sousa Martins. Como se sabe, fundada em 1828, juntamente com a de São Paulo, com vistas a formar novos quadros dirigentes do País que emergia da Independência, para substituírem os velhos bacharéis coimbrãos, as duas academias atraíam os filhos da aristocracia rural enriquecida pelo trabalho escravo. Paranaguá não poderia fugir à regra.
Deputado geral em cinco legislaturas (1850/1864) e depois senador vitalício do Império por cerca de 24 anos (1865/1889), sempre pelo Piauí, ocupou quase todos os ministérios no período imperial (da Justiça – duas vezes, da Guerra, dos Estrangeiros – duas vezes, da Marinha e da Fazenda). Além do mais, presidiu as províncias do Maranhão, de Pernambuco e da Bahia. Presidente do Conselho de Ministros (1882/1883), foi o segundo piauiense a governar o Brasil. O primeiro fora  o oeirense Francisco José Furtado (1864/1865), embora militante da política do Maranhão. Devotado ao estudo da realidade do País, presidiu a Sociedade Brasileira de Geografia e o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, neste sendo sucedido pelo barão do Rio Branco, em 1908.
Convém destacar, por um dever de estrita justiça, que na carreira fulgurante que o levou dos confins gurgueianos ao brilho dos salões mais sofisticados da Corte, inclusive por privar, como poucos, da intimidade de dom Pedro II, Paranaguá não se descurou da problemática piauiense. Ao contrário. Desde o primeiro momento de sua atuação parlamentar até o último suspiro, sustentou bandeiras ainda hoje recorrentes em nossa agenda de desenvolvimento, tais como a navegação do rio Parnaíba, a interligação das bacias do Parnaíba, São Francisco e Tocantins, a construção de um porto marítimo e a ligação deste com os demais portos do litoral brasileiro. Para ele, promovida a navegação, “o progresso e as ideias do tempo se introduziriam na província [...].” Assim, no firme propósito de dotar o Piauí do tão sonhado porto, não titubeou em patrocinar a permuta, pelo decreto 3.012, de 1880, dos áridos sertões piauienses de Crateús pelas areias da antiga freguesia cearense de Amarração, hoje Luís Correia, onde há mais de cem anos se teima em construí-lo. Mas ele fez a parte que lhe competia, à época.
Por todos os títulos, Paranaguá deve ser motivo de orgulho dos piauienses.  Sobretudo, na atual quadra de baixa representatividade política, marcada por frequentes frustrações e desenganos. Com efeito, é fácil perceber que, depois de Petrônio Portella, Reis Veloso, Hugo Napoleão, Valdir Arcoverde, Freitas Neto e João Henrique, praticamente fomos escorraçados do centro das decisões de Brasília. Pois bem, se não há novos, recorramos aos velhos. Daí o acerto de nossa Academia em resgatar a memória do velho marquês. No mínimo, concorre para alimentar nossa autoestima, tão carente de estímulos na atualidade.  
  
*Membro da Academia Piauiense de Letras e presidente do Centro de Estudos e Debates do Gurgueia