quinta-feira, 20 de fevereiro de 2014

MARCAS DA VIDA



20 de fevereiro   Diário Incontínuo

MARCAS DA VIDA

Elmar Carvalho

Um operário de nome José Silva, que fazia um serviço em minha casa, contou-me que seu colega Francisco Sousa gostava de tirar brincadeiras pesadas, delas tendo como objeto os defeitos físicos de sua vítima. Fazia o que hoje todos chamam de bullying, como se isso fosse novidade, por causa do uso da palavra inglesa, quando na verdade a prática existe desde tempos que diria imemoriais.

Tinha Zé Silva uma perna mais curta do que a outra, de modo que coxeava um pouco ao andar. Seu colega, ao observar esse pequeno defeito, quase imperceptível, perguntou se ele tinha um salto do sapato mais alto que o outro, e começou a rir acintosamente, de forma debochada. Zé Silva tinha certa vergonha de seu defeito, e não gostou da forma galhofeira como o outro o tratara. Constrangido, guardou um ressentido silêncio, e afastou-se do local, não sem antes advertir o colega de que não gostava daquele tipo de chacota.

Um primo do Francisco Sousa solidarizou-se com Zé Silva, e “tomou as suas dores”, como se costuma dizer. Chamou o ofendido à parte, e perguntou se ele gostaria de revidar. Ante a resposta afirmativa, disse:
Você já notou que o meu primo nunca usa bermuda nem calção, mas apenas e sempre calça comprida? É que ele tem as pernas muito finas e é um pouco cambota. Se você falar nesse defeito, ele vai se chatear, e não vai mais tirar brincadeira de mau-gosto com você.

Na primeira oportunidade, Zé Silva apalpou a fina canela de Francisco Sousa, e pediu para que ele mostrasse as pernas. Francisco fechou a cara e disse não gostar desse tipo de brincadeira. A partir dessa data, não mais fez qualquer chacota com o defeito físico de quem quer que fosse. Parece ser certo o rifão que diz que o macaco não olha para o próprio rabo. Arrematando sua história, Zé Silva afirmou que todo mundo tem seu ponto fraco.

Desde a minha infância, meus pais nos ensinaram, a mim e aos meus irmãos, a jamais mangarmos de quem quer que fosse. Tenho seguido esse ensinamento por toda a minha vida, e com isso tenho evitado arestas e antipatias, até porque ninguém tem culpa em ter alguma deficiência física.

Por outro lado, soube que havia uma matrona que se comprazia em zombar dos defeitos corporais de seus conterrâneos. Essa mulher veio a ter duas filhas, que, além de feiosas, nasceram com grave deficiência, que sequer lhes permitia andar. Uma outra senhora, tida como orgulhosa e antipática, não permitia que seu filho tivesse contato com o chão, de modo que essa criança ficava sempre deitada no berço ou nos braços da babá.

Por não fazer esforço para engatinhar e para aprender a andar, o menino somente veio a caminhar muito tardiamente, e apresentava uma compleição franzina e um tanto desengonçada. Não direi, em hipótese nenhuma, que houve castigo de Deus nos dois casos, mas acredito que foram aplicadas leis criadas pelo Todo Poderoso. Na Bíblia está dito que Deus retribuirá a cada um segundo a sua obra (Salmos, 62:12). Quem pratica o bem recebe o bem; quem faz o mal terá como recompensa o mal.

O célebre poeta britânico Lord Byron era considerado um belo tipo de homem, embora tivesse um defeito num dos pés, que lhe obrigava a caminhar mancando. Não obstante isso, foi considerado um herói das lutas da Grécia em prol de sua independência, teve várias amantes, e ainda de quebra teria tido uma relação incestuosa com sua meia-irmã.

É possível que ele tenha tido os traumas, os tormentos, as indecisões e atitudes contraditórias de Philip Carey, protagonista do romance Servidão Humana, que tinha um pé boto, e por isso manqueava. Essa personagem era uma espécie de alter ego do autor, Somerset Maugham, uma vez que essa obra-prima possui passagens consideradas autobiográficas, e foi vítima de bullying em sua vida estudantil.

Diz-se que o pavão, apesar de sua enorme beleza, tem os pés feios. Contudo, seria arrematada tolice ou mesmo simples perda de tempo uma pessoa ficar olhando os pés dessa deslumbrante ave, que é considerada símbolo da vaidade humana, tendo a sua magnífica plumagem para contemplar. Apesar de nossas falhas e feiúras, todos temos a nossa beleza e as nossas qualidades. O mais importante é que busquemos o nosso autoaperfeiçoamento, de modo que as virtudes possam suplantar as qualidades negativas.

Através das lições que meus pais me transmitiram e do que tenho observado e lido ao longo de minha vida, sempre entendi que primeiro devemos observar os nossos próprios senões, sejam eles físicos ou morais. E devemos nos esforçar para nos corrigir. Procuro, assim, seguir a advertência de Cristo: “Hipócrita, tira primeiro a trave do teu olho, e então cuidarás em tirar o argueiro do olho do teu irmão” (Mateus, 7:5).      

quarta-feira, 19 de fevereiro de 2014

Santiago Andrade, o cinegrafista morto: apenas uma ponta do iceberg...


               
 Cunha e Silva Filho


             Ninguém  estaria a favor do  irresponsável  que  covardemente  ceifou a vida de um  competente e respeitado  cinegrafista da  Rede Bandeirante, o ainda moço  jornalista Santiago  Andrade, que,  como tantos outros  jornalistas brasileiros ou estrangeiros, estão cumprindo  com o seu dever de informar o público com as  imagens  que acompanham  o  trabalho das reportagens. Vi o depoimento  entrecortado  de dor da esposa do cinegrafista  diante das câmeras  da TV. É mais um  crime entre milhares que  estão ocorrendo de um certo tempo  para cá na vida  social  brasileira.
          Quem provocou a tragédia  seguramente não é o  único   culpado. Há culpados,  inclusive  o tipo de  política de segurança que  temos  no país e, de forma  mais  violenta, no eixo Rio-São Paulo.
        Este  crime  já há tempo era previsível.   Poderia  acontecer em manifestações a qualquer momento e  tendo  como  culpado ou um arruaceiro matando  um policial ou  um  policial  matando um arruaceiro. Era de se esperar  esta tragédia  anunciada  que  poderia ser evitada se nossas autoridades  dos governos  estadual e municipal  nos seus setores de segurança, da polícia  militar, polícia civil  tivessem tido  competência e respeito   público  diante da  população carioca clamando  por seus direitos.  Por isso,  o assassino  não é o  único  culpado. Culpados  somos todos  nós que elegemos   políticos  que, nos seus mandatos,  deixam muito a desejar. São, por isso,   autoritários e péssimos   gestores  em suas funções.  Veja-se no  estado do Rio de Janeiro. Temos um  governador  que, em geral, é repudiado  pelos cariocas. O prefeito, da mesma forma,  não é bem visto  pelo  eleitorado.
     Quando um  secretário de segurança quer submeter ao Congresso Nacional  um projeto  de lei  com  dispositivos  legais   que   enquadrem  arruaceiros e  grupos  mascarados  conhecidos  como  black blocs em crimes  hediondos ou ações  de natureza  terrorista,  faltou ao secretário estender  esta tipificação de crimes  aos assassinos  e monstros da sociedade  que há muito tempo  acabaram com a paz do Rio de Janeiro, tanto quanto a de  São Paulo e resto   do país.
    Numa terra de ninguém, como é a situação  de violência brasileira, uma das mais  altas do mundo, ele, ao contrário,  poderia  encaminhar  um  projeto de lei  bem  mais  eficiente, o de  prisão  perpétua  para  crimes  hediondos e prisão real, não  esta contrafação e este  arremedo  de punição protegidos  pelas  brechas  da lei e pela diminuição  de penas  por  bom comportamento,  uma hipocrisia  forjada  pela nossa  estrutura  jurídico-prisional.
    A mídia estrangeira dos países  adiantados e com  liberdade de imprensa,  a quem  sabe ler  nas entrelinhas, se solidarizou com   a imprensa  brasileira indignada com a morte  cruel  de Santiago  Andrade, mas  deu  um recado certo para  o governo  brasileiro atual: o de que  o governo petista  tem-se omitido  na proteção   devida aos  jornalistas   do país  que são  vítimas  também  da truculência  policial e de restrição à liberdade de imprensa.
   Temos vários casos  de  assassínios  e agressões  partidas  dos órgãos  de segurança contra jornalistas e repórteres. Urge que  as associações  ligadas  à imprensa  exijam  mais  proteção aos  jornalistas, fazendo com que  usem  indumentária  e equipamento  adequados   semelhantes àqueles  usados  em  tempo de guerra.   
    Isto seria um  grande passo  em defesa da  incolumidade  física  dos que  mourejam  na imprensa que vai para as ruas  fazer a cobertura de situações de violência,  crimes, protestos, manifestações  sociais  contra  governos  que são  hostis à sociedade, ou  corruptos com  o dinheiro  público, ou  não  estão  cumprindo  as promessas de soluções  de deficiências gritantes  da  população em áreas específicas e vitais, tais como  transporte  público,  saúde, educação,  lazer, cultura.
   É evidente que  a imprensa  esteja unida  em defesa de um  colega  morto, que todos  lamentamos  profundamente. Contudo,  há outras implicações  na morte  do jornalista das quais não se tem  ainda  a verdade mais funda.
  A resposta da  polícia do Rio  foi  direta e eficiente ao  revelar  os culpados. Mas isso,  não é o bastante. Só se tem a parte de um todo e é nesse todo  que talvez fôssemos  localizar  os verdadeiros  culpados. A morte de  Santiago  nos lembra a morte de Amarildo e de tantos  outros   despossuídos que  sumiram  da vista da sociedade e a  polícia,  e o secretário de segurança, e o ministério  público, e o  governador e a Presidente  Dilma  Roussef, os deputados, os senadores,  os ministros, por que não  foram todos eles  rigorosos  na apuração  dos culpados  por tantas   matanças  de cidadãos brasileiros impunes até hoje? Por que  não foram eficientes   e prontos  a dar  satisfação à sociedade.
   Os assassínios  bárbaros devem ser medidos  com  peso  igual.  Enfim,  onde estão a presteza e a resposta  imediata da  polícia civil e do poder  público  em geral  que não mobilizaram  avião e o escambau a fim de  caçar  assassinos que ainda  aí estão  livres, lépidos e fagueiros?
   Os culpados estão por aí,   sem  acusação nem  julgamento, nem  processos  que  levem  à  identificação  de criminosos de inocentes. Por que as forças  policiais do estado do Rio de Janeiro  não  debelaram  grupos   de criminosos e matadores que ainda  campeiam  mandando e desmandando  nas comunidades  carentes  cariocas?

  Lamentamos, repetimos, a morte de um jornalista  operoso  e  estimado  por  seus colegas; todavia,  lamentamos  também  e por igual  as mortes  de outros inocentes que não tiveram,  por serem  humildes e abandonados,  o mesmo tratamento  do  pranteado  cinegrafista  Santiago nem  o poderio da mídia  escrita e falada   de aglomerados   das comunicações.

terça-feira, 18 de fevereiro de 2014

Buriti, rei das palmas



Fonseca Neto

Vivemos num país que já foi conhecido como Pindorama ou Piratininga – a Terra das Palmeiras. E a do buriti é considerada em todos os tempos como a mais bela no extenso viveiro de espécies das palmáceas deste trópico.

Agora imagine nascer numa cidade emoldurada por um buritizal vigoroso em que buritizeiros de todas as idades terçam suas palmas num festival encantador. Imaginou?

Pois assim é a cidade em que eu nasci. Seus belos buritizais formam densa paisagem dessa palma circular, parecida com as pinturas dum resplendor e de raios verdes plissados e pontas suavemente quebradas.

Quando eu me entendi” foi ouvindo minha avó Chiquinha de Moura dizer que onde nasce buritizeiro, pode-se olhar de perto, que tem olho d’água no pé: “ele só gosta de água minando”. Até nasce, mas nunca cresce perto de água ou aguada qualquer: rio que vem de longe, lagoa de água parada, açude; não adianta. Tem que ter chão minando água límpida natural ali por perto. É exigente.

Assim é na minha Freguesia, onde fizeram ontem taba os Aranhim: ao nascente, uma serrota coberta de arvoredo virgem, detrás da qual nasce o sol depois que já nasceu para todo o sertão. Nos outros três pontos cardeais, reinam as ditas palmas-rainhas... Para as bandas da Sant’Ângela e do sítio São Joaquim, já se mesclam às do babaçu, da macaúba, do pati... Até dos coquitos.

Assim como a vó sabia o xodó de vida ou morte do buritizeiro com água virgem, o povo da minha terra sabe tudo do buriti. Eu mesmo já comi, feito em muitos lugares, o doce preparado com sua polpa quase-encarnada. Mas igual ao que se faz na Passagem Franca – vou apostando –, ninguém faz. É arte antiga e já hoje rareiam os que a praticam. Precisa paciência em busca do “ponto” perfeito, algo incompatível com as pressas da vida presente.

O buriti é uma dádiva divina. O que hoje a pesquisa aplicada ao seu estudo “cientificiza”, apenas confirma o que a sabedoria das gentes primeiras de há muito descobrira. Além do fruto, carne e óleo, do talo, tala e palha, disto tudo se faz muita coisa que a vida precisa, em sua gratuidade, para ser bela e prática.

Há registros de que o buriti é originário do arquipélago de Trinidad e Tobago. Aliás, de sua baga-semente ou bago nunca ouvi dizer o que, dele, fazem os homens. Nesta região atualmente chamada Meio Norte, o seu nome foi ouvido dos tupinambás pelo frei Cristóvão de Lisboa que assim anotou –“ mburi’ti” – e daí que na língua do invasor luso passou-se a chamá-lo de "Buriti", "miriti", "muriti", "muritim" e "muruti". "Carandá", noutros lugares. Reina nos brejos de quase todo o Brasil. Mas é típico do bioma dos grandes vales do cerrado. No Jalapão o buriti é um semideus e, claro, sem ele, essa nesga do coração do Brasil não teria os dons de paraíso que tem. Diga-se que ameaçado, porque as águas, virgens, que um dia lhes nasceriam aos pés e alimentariam, estão sendo roubadas de cima das serras sob a forma de grãos sojeiros e toras eucaliptas para o jogo vil do capital que pouco interessa à vida.

Li notícias de que a deputada Nise Rego, da região de Barras, das Cabeceiras e da Boa Hora, propôs à Assembleia do Piauí medida legislativa com vistas à proteção dessa palmeira e pensando o seu aproveitamento sustentável no Estado. Cumprimento-a pela iniciativa.

E até penso que o povo da Baixa Grande do Ribeiro também deveria fazê-lo. É que, a exemplo da Passagem da minha nascença e pertença, essa cidade gurgueiana do sul do Piauí tem a mirar a sua grande e majestosa praça central um resplendoroso buritizal.

Num site vi que “existem buritis machos e fêmeas”. Machos produzem cachos que apenas desabrocham em flores; fêmeas, as flores se transformam em frutos. E “é preciso aguardar um ano para que os frutos estejam maduros e aptos para a colheita entre os meses de dezembro e fevereiro”.

Colheita? Na Passagem não se o colhe, coleta. Enquanto mansamente descem em escamas boiando no sutil e pantanoso riacho Inhumas.    

sábado, 15 de fevereiro de 2014

ENIGMA


ENIGMA

Elmar Carvalho

entre o som
        o sono
        o sonho
        a sombra e a sobra
eu me decomponho
    em escombros
em farpas e agulhas
    escarpas e fagulhas
                              desfeito enfim
                              em fogos de artifício
                              feito estrelas de mim
esfinge autoantropofágica que
não se decifrou e que a si
mesma se devorou       

sexta-feira, 14 de fevereiro de 2014

EXORCIZANDO AS DOENÇAS


EXORCIZANDO AS DOENÇAS

Jacob Fortes

A sabedoria popular sustenta, de modo veemente, que os recém-nascidos, bípedes ou quadrúpedes, trazem em seus corpos uma espécie de antígeno pelo qual o organismo mantém-se protegido de doenças por duradouros anos. Seria digamos algo semelhante ao colostro, líquido amarelo secretado pelas glândulas mamárias antes e, principalmente, depois do parto, rico em anticorpos. O colostro tem a função de imunizar o recente, exemplificativamente os bezerros.

Mas o antígeno, talqualmente os repelentes, têm prazo de validade; afugenta enquanto perdura sua ação. A medicina não confirma, mas também não refuta essa crença acerca do antígeno. Verdade ou mentira o fato é que o populacho, esteado na superstição, tradição, ocultismo ou coisa que o valha, acredita piamente nas propriedades que tem o antígeno de enxotar agentes patogênicos; invasores. Nesse aspecto o sistema imunológico é, misericordiosissimamente, o lado inventivo e benfeitor da natureza. O problema é que não se sabe quando termina o prazo de validade do antígeno. Porém uma coisa é certa: experiencialmente sabe-se que o seu combustível é bastante rentável, suficiente para percorrer todo o calendário da primavera e, de brinde, atingir a fronteira do verão. Por causa dos efeitos longevos do antígeno há casos em que o cristão consegue atravessar, ileso, sem avarias, todo o território do verão. Coincidência ou não, quando a criatura, agora do meio-dia para a tarde, põe os pés em solo outonal aí começa o desmantelo, a bagunça, o flagelo. Em bandos ou em manadas, marmotas surgem de todas as paragens, inclusive do estrangeiro, com o firme propósito de se instalar na cacunda do cristão, justamente quando este, despojado da intrepidez da mocidade, (e do orgulho), já não tem munição grossa para reagir. Invariavelmente o lombo está ornado de mataduras causadas pelo albardão dos anos. Esses seres espectrais chegam à socapa, como quem não quer nada, e, ao menor descuido da vigilância, vão-se alojando, cada um a seu tempo, nos organismos humanos deixando-os lesionados, achacados, escarificados, fazendo lembrar os vergões de chicotada que zebravam o dorso dos cativos quando estes participavam das delicadas aulas de correção regidas pela bondosa escravatura. A técnica das marmotas, aliás, muito se assemelha ao movimento dos sem-teto.

Ainda que nenhum organismo esteja imune a enfermidades, verdade é que existem aqueles que têm tendências inatas para atrair essas marmotas; recendem um cheiro agradabilíssimo ao olfato das assombrações. Por causa desse cheiro gustativo certos organismos estão sempre lotados, não há vaga para mais ninguém. Nesse “santuário” de doença em cuja romaria há peregrinos nacionais e importados, o que se vê são doenças do lado de fora, à espera de vaga. Quando o hospedeiro, com o corpo apinhado de doença, já não suporta o peso da carga ele, que mal se levanta, se alui e, afadigado, sai em busca de um médico (alguns preferem os mandingueiros) que lhe possa prescrever um antídoto, um uma surra de pinhão roxo, um alvará de despejo com que possa exorcizar os inquilinos malfazejos. Mas é preciso alertar que a solução nem sempre ocorre de forma imediata, pois há invasores portadores de estabilidade assegurada pela usucapião. Em tais ocorrências há que se recorrer ao tribunal imagiológico cujo itinerário hierárquico é pródigo em instâncias de grande valimento dentre elas a ressonância magnética, o eletrocardiograma, o ultrassom e outras que vão além das catorze estações da via-sacra.

Apesar dos achaques que as marmotas vão causando mundo afora, — além, é claro, de o encherem com o seu assombro —, durante o outono é possível ao padecente conseguir uma boa reforma junto a um bom médico. O mesmo já não se pode dizer em relação aos que pisam em áreas jurisdicionadas ao inverno, a última quadra da vida. Nessa fase, em que a primavera é algo que ficou num passado distante e os que dominavam agora são dominados, reformas já não são eficientes; apenas paliam.

Seja como for, o importante é dulcificar a vida, afugentar do corpo a acidez para não atrair cupins. Se não sabe o nobre leitor, o cupim só habita solos extremamente ácidos. Quem, viajando de automóvel, já avistou, à margem da via, um talhão de solo abarrotado de arranha-céus edificados pelos cupins? Então, eles só habitam essas terras porque são extremamente ácidas. Os solos corrigidos por meio de calcário não lhes servem de estalagem; em vez de palatáveis lhes são repulsivos.

No cardápio destinado a dulcificar a vida há preceitos inumeráveis com que se podem espaventar as marmotas: um deles refere-se à higiene mental derivada de viagens e tudo mais de efeito anticorrosivo às rotinas de ferrolho, incluso espairecer na orla, no bosque, nos palhaços de circo que dão fidelidade do riso.

Ainda que esta prédica esconjuratória possa ressoar aos ouvidos de todos, maior favor prestará aos que — atravessando frajolamente a quadra da mocidade — estão longe de ficar perto de quem está perto do fim. Desavisados, jamais imaginam que um dia lhes baterá à porta uma fatura cobrando-lhes o frescor da mocidade. Pelo SIM, pelo NÃO, convém não olvidar: a natureza que concede é a mesma que toma; forma e deforma, põe e dispõe.

Xô, marmotas. Salvante as doenças grudadas ao meu cangote por força de estabilizada, na minha cacunda não tem mais vaga. Que Deus se apiede dos infelizes hospedeiros.

quarta-feira, 12 de fevereiro de 2014

O TRABALHO, O ÓCIO E A PREGUIÇA




12 de fevereiro   Diário Incontínuo

O TRABALHO, O ÓCIO E A PREGUIÇA

Elmar Carvalho

Muitos consideram que os nossos índios eram preguiçosos. Entretanto, outros tantos (ou mais) entendem que não se tratava de indolência, mas que eles trabalhavam apenas o suficiente para a sua sobrevivência e da família, mesmo porque não tinham a preocupação de acumular riquezas em celeiros ou paióis. Jesus (Mateus, 6:19) nos advertiu para que não tenhamos apego aos bens materiais, ao dizer: “Não ajunteis tesouros na terra, onde a traça e a ferrugem tudo consomem, e onde os ladrões minam e roubam”.

Alguns defendem a tese de que a preguiça não deve ser confundida com o ócio. Enquanto a primeira seria a pura e total indolência, em que a pessoa se compraz em nada fazer, nem mesmo pensar ou ler, o segundo seria o estado de inércia ideal para alguém pensar, refletir, criar e elaborar uma obra de arte ou um trabalho intelectual. Através do ócio produtivo e criativo, o artista poderia conceber mentalmente uma pintura, uma estátua, um poema ou qualquer outro artefato artístico, que depois executaria no suporte adequado. Também alguma invenção e teoria poderiam ser concebidas através de um tempo destinado exclusivamente à reflexão.

Atualmente, a fábula da formiga e da cigarra teria sido modificada, de forma que a sua lição ou moral já não é a mesma. A formiga era apresentada como exemplo de dedicação ilimitada ao trabalho e de previdência, sempre com os celeiros refertos de alimentos, sem nunca passar fome, mesmo na época das intempéries. A cigarra, ao contrário, era vista como preguiçosa e imprevidente, precisando, para sobreviver, da misericórdia alheia, e portanto tinha a mácula de pedinte ou mendiga.

Na versão contemporânea da alegoria, entende-se que a cigarra não é e nem nunca foi indolente; que seu ofício ou profissão é cantar. Nasceu para ser cantora, sendo esta a sua vocação incontrastável. Conta-se que, por meio de sua arte e de seus shows, leva uma vida nababesca, não mais necessitando da caridade de ninguém, ao passo que a formiga leva uma vida de sacrifício, de muito trabalho e pouca recompensa.

Por falar em trabalho e indolência, contou-me um amigo que uma pessoa de sua amizade lhe expusera um fato acontecido com seu pai. Este, quando ainda jovem, foi trabalhar para uma proprietária rural, em serviço de farinhada. Seu trabalho consistia em “puxar” uma roda de um aviamento, que era o nome que se dava a uma casa de beneficiar mandioca, para a produção de farinha, puba, goma, beiju etc.

A roda que o pai do amigo de meu amigo deveria girar (ele de um lado e outro trabalhador no lado oposto), mediante uma manivela, era ligada por uma correia de couro ao “caititu”, que era o nome dado a um cilindro dentado, em que o tubérculo da mandioca era transformado numa pasta, que depois passaria por outros procedimentos até chegar ao produto final. Um trabalhador, geralmente uma mulher, encostava a mandioca nas serras metálicas do “caititu”, com muita atenção e perícia, pois poderia sofrer sério acidente e ficar sem parte dos dedos, caso se descuidasse ou exagerasse na força empregada.

Após o almoço, o trabalhador tentou tirar um cochilo, recostado a uma parede. Foi repreendido pela matrona rural, que advertiu não haver intervalo para descanso, e que ele deveria retornar imediatamente ao manejo da roda do aviamento. O homem resmungou algumas palavras ininteligíveis, mas que demonstravam o seu protesto e insatisfação. A proprietária da casa de farinhada não teve complacência, e o repreendeu com estes versos: “Se você não gosta de trabalhar, / trabalhe mais ainda; / trabalhe até ter, / e depois que tiver / trabalhe lá se quiser”.


Esse trabalhador incutiu na cabeça do filho, desde que ele ainda era bem novo, para que se esforçasse para obter o seu próprio imóvel, para não ter a vida sofrida, a vida severa severina que ele tivera. O rebento seguiu-lhe o conselho, e conseguiu adquirir a sua propriedade rural, para não ser vítima das agruras que seu genitor padecera.    

segunda-feira, 10 de fevereiro de 2014

Saúde pública brasileira


Cunha e Silva Filho

Existem dois tipos de serviços  de saúde no  país: a dos que podem  ter  planos de saúde privada e dos pobres, dos que não podem pagar  um  plano e, portanto,  têm, caso adoeçam,  o atendimento em geral  precário  do  serviço  público.

Há algumas décadas,  a saúde  pública  brasileira  tinha  alto  padrão de atendimento, com médicos  competentes  e de larga experiência, formados  por  universidades   estaduais e federais, com professores   bem-formados, com  ingresso através de  rigorosos exames  de vestibular aos cursos  médicos. Ainda não havia  a proliferação de faculdades de medicina  de baixo nível de formação, como em geral acontece com  grande parte de   faculdades de medicina  particulares  espelhadas  pelos grandes centros  urbanos

  Criei  meus filhos  sendo  tratados  por médicos do setor  público, o antigo INPS. Ainda nem se falava em planos  privados. Com o tempo,  o atendimento  da medicina  pública foi caindo de nível  até chegar  a esta  estagnação deplorável  em que se encontra  hoje,  com   hospitais  mal equipados,  mal administrados,  onde falta tudo, até  os bons médicos de outrora.

Para ser um bom   médico,  o candidato tem, primeiro, que ter vocação,  habilidade  para lidar cm   pessoas doentes,  estar bem  informado   do desenvolvimento da medicina  dos países adiantados,  ser estudioso  da bibliografia   atualizada  no campo da medicina, realizar  cursos   de aperfeiçoamento  na sua área,  frequentar congressos  nacionais  e internacionais e ter  um espírito  devotado  à nobre profissão  de médico, de médico que  nem de longe  possa ser   imbuído do sentido  de lucro, de mercantilismo  ao lidar  com a sua  profissão.

Pessoalmente,  já conheci  bons médicos,  pacientes, cuidadosos,  empáticos que na verdade se interessam  pelos pacientes e desejam  curá-los, que é o objetivo  mais caro ao  médico, sem o qual  ele não estará eticamente  cumprindo à risca o juramento de Hipócrates (460-370 a. C.), o pai da Medicina.

Se alguém pretende  cursar medicina para fazer  da profissão  somente  riqueza não se  tornará  nunca um médico à altura do juramento que faz no ato de cerimônia de formatura.A vaidade, a presunção, a falta de afabilidade junto aos pacientes jamais levarão  ao aperfeiçoamento   do médico. Além disso, deve ter   profunda conduta ética,  rigor  em dar o diagnóstico, responsabilidade,  integridade e comprometimento com  a vida  dos que estão  aos seus cuidados.

O país precisa com urgência, - atenção ministério da Educação! - de repensar  a formação  dos médicos  brasileiros,  só permitindo o ingresso aos cursos  de medicina  àqueles  que estão  intelectualmente  preparados em  todos os aspectos que envolvem a sua formação  científica,  exigindo  a obrigatoriedade de  cada acadêmico  passar pela   residência médica nos melhores   hospitais e  institutos  de medicina, além  de um  criterioso  exame de provas  orais e prática  junto ao CRM.  Não pode haver  leniência  com  uma profissão  que  lida com a vida humana.

Ontem, leitor,  uma criança de quatro anos  faleceu em São Paulo. Ela estava com apendicite já em ponto de ser operada, o que lhe foi  negado por  culpa da negligência e irresponsabilidade médica, que não lhe deu  diagnóstico  correto, numa   peregrinação  em quatro  hospitais. Em cada um,  a criança  não  conseguiu  fazer  exames  adequados  para  conclusão  do que sofria. Eis aí mais um  caso flagrante do descaso  de médicos  e de gerenciamento  hospitalar  provocando  óbito  desnecessário, numa ação  criminosa  contra os direitos  de uma criança que não são  respeitados no país.

Configura o incidente um crime  contra  um inocente por parte  de profissionais  e, por extensão,  das autoridades  responsáveis  pela saúde  pública  brasileira. A amargurada   confissão  do pai de Anderson,  este é o nome  da criança, é das mais pungentes que ouvi nos últimos  anos. Chorando,  o jovem  pai de Anderson, compartilhando  sua  dor imensa com a jovem  mãe da criança, é o retrato  de um  protesto   justo  por uma situação  de impunidade e de solidão  vivenciadas  pelo casal. O choro  e as palavras  de indignação  contra   o abandono  a que foi relegada a criança  nos recintos dos hospitais sem que em nenhum deles  fosse dado  o diagnóstico   correto para o mal-estar  do pequeno Anderson,  é mais um lastimável  número de uma elevada e sempre crescente  estatística  de  mortes de crianças e adultos por falta de  atendimento  na rede pública  do país.

Enquanto  os pensamentos  atuais do governo federal, à frente a Presidente Dilma Rousseff, se voltam prioritariamente para os gastos   astronômicos  com  Copa Mundial, com as  Olimpíadas,  com  viagens  a países  a preço de ouro, com  hospedagens nos melhores  hotéis do mundo e com  outras nababescas  despesas com alimentação  em  luxuosos   restaurantes para atender  regiamente  a enorme comitiva  presidencial,  a população  modesta do país  morre à míngua  por falta  de bons médicos,  de bons hospitais e de respeito pelo  brasileiro. Não há como  fugir ao truísmo: -Este não é um país sério.    

domingo, 9 de fevereiro de 2014

Seleta Piauiense - Oliveira Neto


Fiapos do Coração

Oliveira Neto (1907 – 1983)

Meu coração de velho transformou-se
Numa jangada leve, sem pujança,
Cuja vela no tempo esfacelou-se
No caprichoso vento da esperança...

A energia do amor desventurou-se,
Perdeu aquela chama de bonança
De que tanto nas lutas orgulhou-se
Com sucesso vigor e segurança...

E agora remendando com fiapos
Dos versos que se foram mundo em fora,
Contenta-se em forjar estes farrapos

De poesia sem flama e sem beleza
Por lhe faltar o brilho da sonora
Sugestão divina! Da Natureza!

(Extraído de Antologia dos Poetas Piauienses, de Wilson Carvalho Gonçalves)

sábado, 8 de fevereiro de 2014

Ambições políticas sem vocações sociais?



José Maria Vasconcelos
Cronista, josemaria001@hotmail.com

          Neste início de ano eleitoral, a imprensa vem destacando o quiproquó dos bastidores dos partidos políticos. Um sai não sai. Isto por aquilo. Candidata-se ou não. Ela ou eu. Cômica confusão de interesses e ambições de tira e estende tapete, verborreia, ética demagógica, acomodação de parentes. Se duvidar, companheira de programa terá vez. Os que ridicularizavam, no passado, as oligarquias e coronelismo hoje se nutrem das mesmas panelinhas e mazelas.

          No dia 31 de janeiro, a convite do comando da Polícia Militar do Piauí, ministrei palestra para cerca de 150 fardados, entre oficiais, coronéis, soldados e comandantes. O tema despertou-os para a dignidade de exercer a missão de servir a sociedade: “Idealismo e Vocação”. E dignidade é coisa séria.

          Dignidade é um patrimônio moral que não tem preço, mas valor. Não vende, não se corrompe, não se troca. Portanto ideais e conquistas merecem reconhecimento e louvor.

          Ideal vem de ideia, metas e objetivos. Ideal da carreira médica, jurídica, militar, empresarial. Da conquista da casa própria, carro novo, mandato político, casamento, família constituída. Refiro-me a ideais nobres, não os das gestões corruptas, governos desastrados, políticos e profissionais oportunistas.

          Nobres ideais exigem a prática de virtudes e não convivem com ambições viciadas e imorais, dinheiro público roubado, heranças e dádivas ilícitas. Sem virtudes do espírito, pode-se ganhar o mundo, mas se perde a alma. O mundo utilitarista desdenha do exercício da espiritualidade, por isso paga caro com vicissitudes da vida. Provam-se os sobreditos com exemplos de pessoas, aparentemente felizes, entretanto viciadas e doentes. Parlamentar confessava-me: “Zé, sobrevivo com dezena de comprimidos!” Arre!

          Idealismo exige paixão, não se deixa levar pelos encantos dos pais, salário ou status social. Falta algo mais: a vocação. Idealistas são maioria. Poucos os vocacionados. A vocação é uma espécie de chamado superior, divino, a convocação para nobre missão. Espiritualistas se guiam pela sabedoria do alto. Gente simples, generosa, espírito público, às vezes, subestimada pelo pouco talento, termina arrebentando na missão para a qual foi convocada. Profeta Moisés, culto, mas gago e pusilânime, custou aceitar a tarefa para libertar seu povo da escravidão de Faraó. Rei Davi, último dos irmãos, pastor de ovelhas, ungido rei, constituiu o estado de Israel, vencendo batalhas. 12 apóstolos, vindos da barbárie social, batizados no espírito de Deus, continuaram a missão de Cristo. Papa João XXIII, origem camponesa, cultura mediana, sacudiu a Igreja instituindo o Concílio Vaticano II. Francisco de Assis, rico e boêmio, despiu-se do aparato e abalou o mundo com o franciscanismo. Papa Francisco, que apaixona todos os vértices religiosos com fácil retórica e simplicidade de vida.

          O Brasil clama por líderes do bem, vocacionados pelas causas sociais. Há idealistas pensando mais em si do que além de si. Neste momento de interesses por candidatura da esposa ou membros da família, uma mãozinha na consciência até que faz bem. Porque, “do jeito que está, pior não fica”. O ingênuo humorista tinha razão.       

sexta-feira, 7 de fevereiro de 2014

O SIM E O NÃO


O SIM E O NÃO

Jacob Fortes

Esses velhos opositores, advérbios de afirmação e negação, embora se destaquem por seus aspectos semânticos dissonantes, há neles nuances infinitesimais, quase imperceptíveis.

O sim é colorido; o não, pardacento. O sim tem o semblante alegre de quem bebe o vinho; o não, do médico que, contrafeito, o proíbe. O sim é leve, gracioso; o não, pesado, desgracioso. O sim tonifica o ânimo; o não, acabrunha. O sim surge infrene; o não, refreado. O sim é luminoso; o não, opaco. O sim é expansivo; o não, recatado. O sim denota preferência; o não, antipatia. O sim faz cantar; o não, emudecer. O sim remete para o regozijo; o não, para condolências. O sim exprime o passaporte, a carta de alforria, o livramento; o não, a detenção, porteira fechada.

Apesar das suas oposições vigorosas nem o sim, nem o não se proclamam vencedores; apenas cada qual acredita dispor de fármaco capaz de potenciar o escoramento de medidas deliberativas. Cada qual se esmera em defender as suas cores, o seu milagre. Aos que não se alinharem nem ao sim nem ao não resta o atalho do irresoluto advérbio de dúvida, alheado, desfibrado, sem tomar propósito, também conhecido por Múcio ou Laissez-faire: deixa como estar para ver como fica.

A esses pequenos gigantes monossilábicos, aliás, consagrados ao ofício relevante de comunicar por meio da expressão oral ou escrita em países lusófonos — deixo aqui o sorriso de saudação de um fã. Ainda que esses garnisés magistrais sejam dignos de todos os louvores, essencial é dizer que, por vezes, maior benefício faz o não, que não lisonjeia, do que o sim lisonjeador. E nessa asserção inclua-se também o brocardo pelo qual é preferível o não da lealdade que o sim da hipocrisia.

Até o próximo encontro ocasião em que o advérbio de dúvida, ofendido com as tachas atiradas à sua honra, em tom de mofa, irá defender-se. Alegará em seu libelo que, de conformidade com a ciência, a dúvida é o ponto de partida para chegar-se à verdade. No concernente às pechas de apassivado e vacilante, aliás, calúnias radicadas na inveja, serão demolidas mediante o emprego de expressiva via judicial. Para esse efeito invocará um recurso regimental protelatório de grande valimento, os embargos infringentes.     

quinta-feira, 6 de fevereiro de 2014

PAULO ALMEIDA E AS PALMAS DOS COLEGAS

Elmar e Paulo Almeida

6 de fevereiro   Diário Incontínuo

PAULO ALMEIDA E AS PALMAS DOS COLEGAS

Elmar Carvalho

Na época em que fui fiscal da extinta Superintendência Nacional do Abastecimento – SUNAB, Delegacia do Estado do Piauí, integrei algumas blitzes com a participação de outros órgãos, inclusive a Polícia Federal – SDR-PI, mormente na época dos famigerados congelamentos, que não deram certo nem na poderosa Roma antiga, no tempo do imperador Deocleciano.

Por essa razão, conheci alguns agentes policiais, servidores burocráticos e delegados, entre os quais recordo os nomes dos delegados Jonas Duarte, Antônio Vanderley Portela e Vasconcelos, que ao aposentar-se foi morar em sua terra natal, a bela e aprazível Tianguá, da qual se tornou vice-prefeito, e Airton Franco, que fixou residência em Fortaleza, onde passou a escrever crônicas e artigos, após ter exercido o cargo de secretário de Segurança Pública do Piauí.

No curso de Direito, na Universidade Federal do Piauí, fui colega de alguns agentes e servidores da nossa briosa PF. Recordo o nome de alguns, entre os quais cito: Benjamim de Oliveira, Audenir Rufino Mota, conhecido como Federal, de alegria contagiante, sempre afável e simpático, Francisco Cláudio Bruno Sales, escrivão, cearense, boa praça, José Carlos Fontenele, Nelson Estevan de Andrade, que depois ascendeu a delegado de Polícia Federal, mediante concurso, Lucídio Leódido, natural de Buriti dos Lopes, portanto conterrâneo de minha mulher, Lúcio Machado Vale, hoje juiz de Direito na comarca de São Luís – MA, e Paulo Nunes de Almeida.

Alguns, como o outro Paulo Almeida, o Davi, o Luís Alberto e o Luiz Carlos Martins Alves, são irmãos maçônicos, entusiastas e dedicados à sublime Ordem. Outros foram meus vizinhos, como o Daílo Barreto Marinho, o Martins, o Ribamar, casado com a Bernadete, que foi minha colega na Sunab, o Odom Baltazar Nobre Filho e o Sica (Siqueira), pintor e pirógrafo de enorme talento e apurada técnica. 

Merece referência especial o saudoso irmão Odeon Batista, de grande estatura moral e física, sempre vibrante e cordato, que foi grão mestre do GOB-PI – Grande Oriente do Brasil – Piauí, sobre o qual escrevi uma crônica, publicada na internet.

Vários desses servidores já se aposentaram. Muitos não mais tive a satisfação de rever. Voltei a reencontrar, com certa frequência, o Paulo Nunes de Almeida. De vez em quando nos encontramos na praça de alimentação do shopping Riverside, na qual seu filho Ravanelli tem um bar e lanchonete. No domingo passado, enquanto sorvíamos uma cerveja, ele me contou um fato de sua vida profissional, que acho interessante trazer à luz da publicidade.

Paulo sempre foi uma pessoa afável, prestativa e de boa formação moral. No seu último dia de expediente, antes de aposentar-se, cumpriu seus deveres com o zelo de sempre, com observância do horário regulamentar. Ao final de sua jornada de trabalho, fechou as gavetas e o armário cuidadosamente, e entregou as chaves a quem de direito. Não deixou pendências funcionais e nem objetos particulares nas gavetas, escaninhos e prateleiras.

A administração regional do Piauí não lhe prestou nenhuma homenagem, nem mesmo um simples agradecimento ou obrigado. Não lhe foi outorgada nenhuma singela medalha de honra ao mérito; sequer um diploma de papel. Nenhuma nota no Boletim registrou o fato. Devo advertir que Paulo não precisa dessas honrarias, e não tem queixas por não tê-las recebido. Ao contrário, acha que apenas procurou cumprir o seu dever, e isso deveria ser a rotina de qualquer servidor público.

Todavia, quando se encontrava no hall de saída, um grupo de aproximadamente oito servidores perguntou se poderia acompanhá-lo até o portão, tendo ele respondido afirmativamente. Esses funcionários o seguiram até a saída da repartição, batendo calorosas palmas em sua homenagem. Através desse gesto simples, mas significativo e comovente, esses colegas estavam dizendo para o Paulo Nunes de Almeida que ele havia cumprido a sua missão funcional de forma honrada e digna, e que era um bom colega e um homem de bem.

Acho que essa saraivada de palmas, sinceras e vibrantes, valeram mais do que insígnias de latão e ouropéis que lhe fossem outorgados pela administração a título de honraria. A honra, ele a agasalhava em seu coração e o demonstrou ao longo de sua vida profissional. Que esse despretensioso registro possa servir de exemplo e estímulo a outros servidores públicos.   

terça-feira, 4 de fevereiro de 2014

ECOS DE AMARANTE

Tela do pintor Di Kuka (Abinabel Kunha), inspirada na capa de meu livro Amar Amarante, que me foi presenteada por Homero Castelo Branco

                              ECOS DE AMARANTE

                                                           Elmar Carvalho

Como está posto em sua própria “orelha”, Ecos de Amarante, de Homero Castelo Branco, é um livro sui generis. Embora não se coloque como um produto de vanguarda, ou mesmo como um paradigma da originalidade absoluta, que não existe, nem seu autor reivindica tal pretensão, o compêndio é um misto de romance, historiografia, sociologia, antropologia e repositório da cultura e do folclore amarantino. Termina, portanto, sendo um livro diferente e original, sem, no entanto, perder de vista as lições da tradição literária.

Sua leitura é bastante agradável, tanto pelo estilo escorreito, claro e conciso do autor, sem nenhuma mácula de pedantismo e empáfia, como, sobretudo, pela miscelânea dos vários assuntos tratados.

Pode-se dizer que é uma grande história, recheada de várias histórias menores, um verdadeiro mosaico, contudo, sempre permeado por um fio condutor, que tudo arremata, liga e alinhava, formando uma saborosa unidade.

Na tessitura ficcional, percebe-se uma habilidade do autor na narrativa e nas descrições, bem como na correta caracterização das personagens, que são bem delineadas, e mesmo dotadas de uma correta e lógica postura psicológica, com os atos e fatos bem encadeados e verossímeis. Não obstante siga um fio condutor, contém, como já dito, várias histórias, interligadas, mas que podem ser lidas, sem prejuízo, de forma independente.

Há passagens antológicas, seja pelo psicologismo com que as personagens são esboçadas, seja pela beleza do texto, às vezes repassado de uma verdadeira poesia em prosa, outras vezes pela narrativa tão-somente, a agarrar o leitor, e arrastá-lo até o deslinde final da trama. São vários os trechos que poderiam figurar em qualquer antologia piauiense, como as passagens em que o escritor se reporta às esquisitices de Maria Antônia e do médico Euler Pereira, destacando-se aquela em que esse esculápio, em sua excentricidade, discorre sobre os urubus, que até me fez evocar, apesar de sua originalidade, o célebre episódio da borboleta preta, de Machado de Assis.

De muito encanto e musicalidade, pelo modo de construção do período, são certos termos regionais que utiliza, com parcimônia e pertinência, o que afasta qualquer parentesco com o regionalismo menor, eivado de cacoetes e exageros, a dissimular a falta de talento e a inabilidade na urdidura da romancística.

Ao livro comparecem vários personagens da história amarantina e/ou piauiense, em situações bem colocadas e verossímeis, em que o pano de fundo histórico é fruto de pesquisa e correta interpretação. Assim, aparece o imortal vate Da Costa e Silva, em narrativas e cenas que bem poderiam ter acontecido, pois distantes de episódios grandiosos e mirabolantes, de que muitas vezes lançam mão os romancistas canhestros, para encobrir a falta de talento e traquejo. Outras figuras importantes aparecem, entre elas o professor Cunha e Silva, ao qual são dedicadas várias páginas, merecidamente, pois foi um fundador de colégios, notável jornalista e escritor, além de homem dotado de invulgar erudição. Por vezes, como uma espécie de contraponto, fundamentação e mesmo simples transmissão de conhecimento, o autor traz a colação pequenos textos extraídos da história.

Faz um interessante resgate do folclore e da cultura amarantina, e quando surge o momento oportuno, e não forçado, transcreve versos de cantigas populares, folclóricas e de roda, com cujo artifício dá vida e colorido pitoresco a sua narrativa, além de contribuir para a preservação dessas peças, que correm sério risco de desaparecer para sempre, em face da mídia avassaladora e pasteurizante.
Dílson Lages, Homero, Elmar, Reinaldo Torres e Antenor Rego
A obra traz, por assim dizer, histórias da História, verdadeiros “causos” que a história oficial não conta, por motivos diversos, inclusive pelo pudor e receio de ofender a honra de famílias ditas importantes. Numa visão moderna e avançada, soube colocar fatos que bem se coadunam com a chamada história do cotidiano, em que costumes, hábitos e peculiaridades de uma certa época e comunidade são evidenciados. Para isso o autor desenvolveu, com argúcia e faro investigativo, novas pesquisas e novas interpretações, ao compulsar periódicos da época e “reclamos” comercias, entre outros documentos.

Desse modo, pôde fazer uma espécie de releitura e análise da vida atribulada e romanesca de dona Auta Rosa, figura emblemática dos preconceitos e discriminações de épocas passadas, alguns dos quais ainda renitentes em sua permanência; da importância e beleza cultural do Clube dos Tetéus; da criação, atividade e emulações das “furiosas”, as célebres bandas musicais ou filarmônicas, que animavam a vida social de uma cidade interiorana. Pintou a tela viva da ressurreição ficcional da economia e do comércio de Amarante, principalmente a época da navegabilidade do Parnaíba, com as balsas e “vapores” que percorriam o poético “Velho Monge”, os empórios e entrepostos comerciais, e o fastígio da borracha e do extrativismo, mormente dos carnaubais. Também fatos importantes da história recente são trazidos à baila, numa acentuada aproximação ao que os doutos chamam de história imediata. Todavia sem perder o caráter de que executava obra de criação artística.

Homero Castelo Branco, fazendo jus a seu prenome, constrói uma verdadeira epopéia - a saga histórica, cultural e humana da encantada e bela Amarante, constituindo-se o seu livro um misto de ilíada e odisséia dos páramos dacostianos.

É um livro profundo, e que faz um vertiginoso mergulho nas águas profundas da cultura, folclore e história da “Cidade Azul” do poeta. De grande beleza, canta com graça e harmonia a beleza amarantina, beleza adamantina que também canto em meu poema Amarante, com cujos versos finais encerro esta conversa que já se vai alongando além do esperado e desejável:

            amarante
            perante ti
            imperante
o vento verdeja agreste nos ciprestes
rumoreja aguado nos aguapés
sacoleja sem leste oeste
a copa fagueira das faveiras
            tuas tardes tardas dolentes amaras
                        abres das janelas
                                    debruçadas em melancolias
e alicias e (re)velas
as moças nas modorras mormacentas macilentas

em que delicias cilicias e acalentas...     

segunda-feira, 3 de fevereiro de 2014

DISCO RÍGIDO


Edmar Oliveira

Esses cientistas maravilhosos e suas teorias voadoras! Leio nas folhas, aquela notícia fria que é publicada quando falta assunto, que cientistas revisaram a teoria sobre o esquecimento nos idosos. A gente foi convencido que a cada dia perdíamos neurônios e com isso a nossa capacidade de lembrar e associar fica mais lenta na proporção direta do envelhecimento.

Pois bem, agora cai essa tese. Novos testes dizem que a dificuldade de lembrar e associar é proporcional à quantidade de informação adquirida e, portanto, não são os neurônios que morrem os responsáveis, mas é a quantidade de informação que faz o pensamento ficar lento. E explicam a nova teoria com um modelo computadorizado: é como se o disco rígido dos mais vividos (não mais dos mais velhos, reparem na sutileza) ocupasse a memória disponível fazendo o computador de cada um rodar mais lento.

Invalidaram até os testes do século passado, como se eles não correspondessem à complexidade da informação atual. Na nova bateria de testes inventada, são os menos vividos que têm a dificuldade de associar e lembrar de fatos não vividos, mas só conhecidos pela leitura e estudo. A resposta dos mais vividos e que detêm mais informação são lentas, mas muito mais complexas e explicativas, nos novos testes, do que a resposta dos jovens que têm uma memória rápida, estupenda, mas vazia. Como um computador novo, que rapidamente abre os programas, mas não tem conteúdo para ser trabalhado.

Portanto, meus senhores e colegas de vivência, nós teríamos uma grande vantagem em relação aos nossos filhos e netos.

Mas ainda assim fiquei meio encucado: e essa quantidade de informação não tem perigo de travar, como acontece aos computadores? E a gente pode formatar algumas histórias mal contadas? Posso limpar a lixeira de lembranças que já deletei, para ter mais espaço? Assim como os arquivos temporários que ficaram aqui e que não quero mais? E quando vão inventar um antivírus para a demência ou o Alzheimer?

Por outro lado, agora quando esqueço onde coloquei uma chave, não lembro de um compromisso, passo batido numa data importante, posso explicar pela quantidade de informação que obtive na minha vida e não fico mais com medo de que o alemão estava me perseguindo. Até quando não lembro mais o nome dele. 

Fonte: Blog Piauinauta
__________________________
Para conhecer o assunto:
http://oglobo.globo.com/saude/cerebro-de-idosos-mais-lento-porque-eles-sabem-mais-11358165


domingo, 2 de fevereiro de 2014

Seleta Piauiense - Luiz Lopes Sobrinho


Ciúmes

Luiz Lopes Sobrinho (1905 - 1984)

Não é que o amor que nos meus olhos viste,
Tão cheio de ternura, ardendo em chamas,
Que inda implora, aos céus, num pranto triste,
O teu amor, ao ver que me não amas,

Já se tenha acabado! Ainda existe!
Desgraçado de mim... Tu mais me inflamas,
Com tua indiferença, pois partiste,
Deixando o meu amor, envolto em tramas!

E se hoje, acabrunhado, ando fugindo
De tua doce presença — agora amarga,
Pela tristeza que me vai ferindo,

É só porque, já não suporto ver-te
Passar, da vida, pela estrada larga
Unida àquele que me fez perder-te!     

sábado, 1 de fevereiro de 2014

Oeiras, cidade de arte


Fonseca Neto

Os franceses, e a Unesco, de modo ampliado, conceituam de “cidade de arte” os antigos assentamentos que constituem acervos notáveis, legados da experiência humana em aconchegar-se para inventar o viver comunal. 

Cidade de arte” porque seus vestígios exprimem um sentido maior da engenharia historicamente marcada, culturas caldeadas entre a solidez do material e as levezas do espiritual. Cidade, porque concreção, tangibilidade. Arte, porque impulsão estética, leitura na fluidez da subjetividade. 

Arte”? É pensar com a sugestão do poeta Fernando, de que ela “existe porque a vida não basta”. Oeiras é assim e é uma joia rara no inventário do Patrimônio Histórico brasileiro. É exemplar da cidadela erguida sobre e com os lajedos fraturados do chão local. Fraturados em artísticas cantarias angulares para edificar arranjos de morada, de governo e de produção material. E templos. De perto, adentrando-na, contemplei o rubor de alegria no rosto de Ariano Suassuna frente a majestade armorial-sertoa da catedral da Vitória, erguida por mestres pedreiros, enquanto vaqueiros, antes das barrocas capelas de Ouro Preto. 

Esse conjunto de elementos, no qual a um só tempo repontam o labor cultural de gente de longe e os modos de viver da localidade, compõe um lugar singular e foi há dois anos tombado pelo Iphan, como parte relevante do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional. Trata-se de medida com potencial de grande impacto positivo, parece que ainda não completamente assimilada como tal, principalmente pela parcela maior de seus moradores. Nada incomum, todavia, pois outras cidades igual e anteriormente tombadas conheceram, no começo, idêntica inassimilação. Depois, as percepções mudam, desde que tombar não signifique a mortificação do bem objetado e também desde que junto com a proteção haja medidas concernentes à educação patrimonial. 

Falando em Educação... Nestes dias, Oeiras está no centro de um debate, que precisa ser melhor qualificado, sobre a criação de um núcleo local da Universidade Federal do Piauí. O episódio mais focado no momento alude a um ofício tratando do assunto, emanado do ministro da Educação e dirigido ao governador do Piauí. É que a solicitação encorpa um esforço de vontades conjugadas para vê-la de pé no menor espaço de tempo possível. 

A Ufpi, autora da proposta e a quem cabe a implementação, encaminha em ritmo próprio as articulações cabíveis, e segundo o reitor, na conformidade do tempo adequado à sua devida consecução. No âmbito interno, sobretudo da colegialidade superior, articula projetos de cursos; articula, em nível municipal e estadual, notadamente com políticos mandatários, a aprovação em nível ministerial da alocação dos recursos financeiros para prover as novas e expandidas funções. Tem-se por favorável a atual conjuntura em que o governo vem favorecendo a expansão do ensino público federal para todos os horizontes e modalidades, tendente à interiorização. A própria Oeiras é disso um exemplo com um novíssimo Ifpi – Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia. 

Expressam opinião minoritária, mas, conexas entre si, há duas perguntas: deve a Ufpi se expandir? Expandir-se para Oeiras? Sim, duplo. A expansão da Ufpi é uma contingência de sua legitimidade social, assim como também o é a manutenção, em estado vigoroso, das atividades que já agregou em sua experiência de mais de quatro décadas; e Oeiras deve ter outro campus federal, porque é uma urbs-arte centrípeta, referência de mais de uma dezena de municipalidades historicamente conjugadas, com populações que precisam engendrar a vida sem incorrer na perversão das diásporas que atormentam sobretudo os jovens.

Não se deve, porém, tomar nada disso como, a priori, inexorável. Promova a Ufpi sua expansão, qualificando-a com bons estudos e projetos, por exemplo, sobre que novos cursos essas microrregiões e o próprio Piauí precisam para um futuro de grandeza. No caso de Oeiras, que cursos universitários devem ser ali ofertados? Num mundo tão antigo e numa cidade secular, é fundamental trazer para ela significativas novidades em termos de formação superior. E qualquer estudo sobre potenciais campos de trabalho logo mostrará que não se deve, por exemplo, intentar cursos que a Uespi possidônia já ofereça, ali, ou em Floriano, Picos e Valença. 
  
Membro dos conselhos universitários da Ufpi e da Uespi, assim vemos e assim apoiamos a novidade.