quinta-feira, 9 de junho de 2016

HISTÓRIAS DE ÉVORA - Capítulo IX


HISTÓRIAS DE ÉVORA

Este romance será publicado neste sítio internético de forma seriada (semanalmente), à medida que os capítulos forem sendo escritos.

Capítulo IX   

Caça e caçador

Elmar Carvalho

Após as explicações sobre a campanha de vacinação, Madalena, notando a timidez do rapaz, mas também percebendo o seu olhar embevecido e guloso ao mesmo tempo, sobretudo direcionado ao seu colo e ao seu rosto, com cautela e habilidade, caçou conversa. Perguntou-lhe se ele gostava de literatura, principalmente de ler poemas e romances, tendo ele lhe respondido afirmativamente.

Marcos lhe falou sobre suas produções e projetos literários. Acrescentou que publicava alguns contos, crônicas e poemas no jornal mural e no tipográfico; que já lera todos os livros da pequena biblioteca de seu pai, mas que este tomava livros emprestados de uma pessoa amiga e ele próprio recorria aos livros da biblioteca pública, cujo prazo máximo para devolução era de dez dias.

Percebendo a mulher que o jovem, embora a olhasse com admiração e desejo, jamais iria tomar qualquer iniciativa, por retraimento, receio ou respeito, pousou, muito de leve as suas mãos sobre as dele, que de imediato reagiu, entrelaçando nos seus os cálidos dedos de Madalena.

Num impulso, quase sem pensar, cego de paixão e desejo, o rapaz se levantou, contornou a mesa, e foi em direção à mulher, que também se levantara. Olhando-a profundamente nos olhos, segurou as suas têmporas, em seguida a enlaçou com suavidade, e colheu nos seus os carnudos lábios dela. Ela correspondeu, mas em seguida, com muita delicadeza, se afastou.
– Olhe, aqui não, cuidado, a empregada pode nos ver. Por favor, me acompanhe, venha conhecer a nossa biblioteca.

Foram para um amplo compartimento, onde se encontravam grandes e altas estantes de madeira, repletas de livros. Para não chamar a atenção da empregada, ela puxou a porta, mas a deixou entreaberta. Para a realidade da época, era uma grande biblioteca particular.

Em suas estantes se enfileiravam os volumes da Enciclopédia Britânica, do Tesouro da Juventude, dos Clássicos Jackson, da Biblioteca do Prêmio Nobel, das coleções Clássicos da Literatura Brasileira e Clássicos da Literatura Universal, todos em capa dura, com vinhetas, cercaduras e letras douradas, além de centenas de livros avulsos de poemas, contos, fábulas e romances.

O moço contemplava tudo isso com ternura, e uma quase beatitude, tal qual estivesse diante de um tesouro sagrado. Retirava alguns exemplares e os folheava com delicadeza, em verdadeira carícia. Chegou a roçar o nariz em alguns deles, como se os estivesse cheirando e beijando.

Com muita suavidade e cuidado, passou páginas e páginas da Poesia Completa de Manuel Bandeira, impressa em papel bíblia. Nada disso escapou aos olhares furtivos e periféricos de Madalena, que lhe franqueara escolhesse alguns livros, que só deveriam ser devolvidos quando ele concluísse a leitura, que deveria ser atenta e sem pressa. Ela imaginou a pele suave de seu rosto afagada por dedos tão hábeis e tão macios, conforme já pudera constatar, ainda que por instante demasiado fugaz.  

Marcos escolheu dois romances e Poesias Escolhidas, de Castro Alves, edição comemorativa do centenário do poeta, obra publicada em 1947 pela Imprensa Nacional. Ela se aproximou dele. Fitou-o nos olhos, e emocionada e nervosa disse, com a voz embargada:
– Peço todo sigilo e que não pense mal de mim. Não sou uma leviana e nem doidivanas. Amo e respeito meu marido. Não sei o que deu em mim. Quando você voltar para devolver os livros, conversaremos novamente...


Marcos lhe fez discreta reverência e, sério, a fitou nos olhos, mas não tentou beijá-la ou afagá-la. Não era caçador, mas se fosse, jamais espantaria uma incauta e entontecida gazela.   

quarta-feira, 8 de junho de 2016

O PLANETE TERRA É NOSSO, NÃO DELES


O PLANETE TERRA É NOSSO, NÃO DELES
  
 Cunha e Silva Filho
         

          Estão brincando com  fogo, ou melhor, com  água,  pois as águas estão rolando em Paris,  em toda a  França,  e furiosas, não respeitando nem   as belezas das cidades nem o seus inesquecíveis e imponentes  monumentos, museus, sua invejável Torre Eiffel, seu Arco do Triunfo,  a Catedral de Notre Dame,  sua avenida Champs Elysées,  seu Bois de Boulogne, praças, quer  dizer, marcos históricos, arquitetônicos de incomparável beleza, os quais  podem  ser danificados com as inundações  sem trégua. Deus nos livre delas! Já imaginou o mundo sem Paris?
      Em termos de finesse, de encantamento, de civilização, de erudição, de vida civilizada, de alta filosofia, dos grande  poetas e  prosadores,  a primeira cidade que me vem à mente é  sempre Paris,  a “vitrine do mundo,” como diria um crítico brasileiro aludindo à sua densidade cultural  O Sena (Le Saône, em francês) que  elegantemente  atravessa a  capital francesa, com toda o seu charme   fluvial, seus barcos  turísticos,  desta vez  subiu além das medidas, tal qual fez em 1910, deixando mortos, e tal qual ocorreu em 1982, segundo  informa uma reportagem saída no Globo (04/06/2016), na seção “Mundo.”
       O que neste artigo quero ressaltar é a discussão das mudanças do  clima no mundo hoje.As inundações devastadoras na Europa e mesmo  em outros continentes,  segundo os cientistas, se devem ao velho e batido tema do aquecimento global,  questão à qual não se tem dado a devida  importância ainda que  consideremos  os órgãos ou entidades mundiais e as reuniões de países   que se debruçaram sobre essa questão sem que, todavia,  seus resultados  tenham  sido  aproveitados  para que o nosso  planeta  recue nas taxas altas de poluição,  de  esbanjamento  de dióxido do carbono  por todas as cidades  do mundo.
      Debates,  seminários,  reuniões de especialistas  têm sido realizados sem  que, até agora,  vislumbremos  um quadro  menos sombrio.Os sinais de situações catastróficas  estão à vista de todos. Até crianças  já sabem que os efeitos do CO2  são para valer e que a humanidade  aguente as consequências  que não são  alvissareiras. Muito ao contrário.
     A citada mesma reportagem,  refere duas  opiniões nada  otimistas  sobre o clima no planeta. Uma, de Chris Feild,   coordenador, em 1912,  de um  relatório do “Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas” Foram suas palavras: (...) uma atmosfera mais quente é capaz de reter mais água, e como consequência, as chuvas tornam-se mais pesadas.”  A outra é de Michael Oppenheimer, da Universidade de Princeton EUA),  ainda mais  dramática: (...) Chuvas forte? Inundações? Acostumem-se! Com as mudanças  climáticas, essa é a nova realidade.”
     Diante de um panorama  apreensivo como  o atual,  há que discutir  profundamente  o que se poderia mesmo  fazer  a fim de amenizar os desastres  das águas. Não é tão difícil de   equacionar, mas o difícil mesmo  é mudar as mentalidades dos chefes de Estado que, não obstante comparecendo alguns  às  reuniões de cúpulas,  estabelecem  limites   de diminuição  de níveis de poluição de CO2,  para seus respectivos  países,  inclusive com marcos temporais  para implementação  de medidas  visando à redução dos gases poluentes. Na prática,  não temos  segurança bastante de que se cumprirão esses acordos.
    A hesitação de chefes de Estado   é fácil  deduzir – tem profundas   implicações econômicas, i.e.,  a ambição natural dos homens  põe à frente  o dado econômico,  e , em segundo plano, o ser humano. Mas, isso é um raciocínio distorcido que não resiste   nem mesmo à mais frágil argumentação. Se, em primeiro plano,  só se pensa nos lucros  da economia, do capitalismo desenfreado  e cada vez mais  devorador  dos valores éticos do ser humano, a contrapartida  vem pelos golpes   mortais da Natureza-Mãe, que é sábia e não se dobra à avidez da produtividade  global  desmedida.
   Depois, não me venham se queixar  dos  bilhões de prejuízos ( o caso agora de Paris , da França) causados pelas  inundações  e outros   efeitos   destruidores do meio-ambiente,  os quais  lhes serão  mais  nefastos  do que os ganhos financeiros em razão da  insistência na produção  multiplicada e desenfreada para a  satisfação fútil do consumismo. Ou seja, nesse barco furado  de adesão das pessoas aos   produtos  do capitalismo ególatra  e hedonista, saem perdendo  todos  os consumidores doentios  mais  ainda  os grandes  empresários e  os governos.   É por essa razão que países  como os Estados Unidos, por exemplo, não  têm  presença tão marcante  em cúpulas   onde se discutem   as reduções  exigidas  em defesa  da despoluição  terrestre.  
   Daí ter dito linhas acima  que a questão   dos poluentes de todas  as formas, sobretudo do CO2,  exige uma reforma de mentalidades de líderes mundiais. Obviamente, se  não derem  a devida  atenção a esse debate, não podemos vislumbrar   nossas cidades livres de catástrofes e acts of  God  que porão em risco  a  continuação  da vida em nosso  planeta.  Os avisos das águas  não  são de brincadeira. São para valer.
  Nessa batalha contra a  poluição,  os escapamentos de  gases de veículos, de chaminés, de altos-fornos, de queimadas  criminosas,  do desflorestamento (da Amazônia, sobretudo), de desapreço  pela limpeza de nossos  rios e mares, nós, que não temos peso  ou voz de líderes  mundiais ou nacos de barganha  junto  aos países ricos e desenvolvidos, o que temos  que fazer de bom   é repudiar,   por todos os meios de comunicação,  com  o nosso clamor de indignação contra os  predadores  da Terra.

  V., consumista inveterado, pense em nosso  planeta, já por si, tão vilipendiado,  tão escavado,  tão esburacado (vejam as explorações contínuas das minas pelo mundo),  tão explodido em testes   de armas atômicas,  ou ameaçado por usinas  nucleares , pense nos seus semelhantes  que não têm a sua mentalidade,  e  nos deixe viver em paz e principalmente deixe em paz o nosso  planeta, lindo,  maravilhoso,  deslumbrante, que é a Terra, com a sua lua, o seu sol e o espaço sideral, à noite, pontilhado de estrelas.  

terça-feira, 7 de junho de 2016

Café Literário homenageia Eduarda Miranda e Raduan Nassar


A CAMA DE FERRO DA INTOLERÂNCIA


A CAMA DE FERRO DA INTOLERÂNCIA

Jacob Fortes

Ensinamento marcante pode ser extraído da mitologia grega, mais precisamente do lendário Procusto, bandido que, vivendo, oculto, na serra de Elêusis, à margem da estrada que ligava Mégara a Atenas, tinha em sua casa uma cama de ferro para a qual convidava os viajantes a se deitarem. Os hóspedes de altura superior ao comprimento da cama tinham, enquanto dormiam, as pernas amputadas a machadadas. Os de altura inferior eram esticados, com cordas e roldanas, até que se igualassem ao comprimento da cama.  O reinado de horror do tirânico Procusto chegou ao fim quando o herói ateniense Teseu o capturou e fê-lo deitar em sua própria cama onde teve a cabeça e pés decepados.  Teseu aplicou a Procusto o mesmo suplício que infligia aos seus hóspedes, incautos. A lógica doentia de Procusto era a padronização, isto é, todos deveriam caber na sua medida, na sua régua. Os que estivessem fora da medida única seriam enquadrados, subjugados. Embora Teseu tenha aniquilado o monstro da mitologia grega, seu espírito intolerante até hoje faz estragos pelo mundo afora, inclusive no Brasil. Aliás, a medida única de Procusto, representada por sua cama de ferro, metaforiza cabalmente o sentido da intolerância de uns em relação a outros. Mesmo sem a crueldade dos métodos de Procusto, frequentemente queremos enquadrar as pessoas na nossa régua de comportamento, nos padrões que julgamos ideias, ajustando-as aos conceitos de como deveriam ser. Vezes sem conta o espírito de Procusto se interpõe à história da humanidade. Exemplos de singular relevo são o holocausto e escravidão negra, onde os que se julgavam seres superiores acharam-se no direito de subjugar os que eram “diferentes”. Na inquisição usou-se até o nome de Deus para enquadrar os “diferentes”.  As cenas comuns de homofobia e ataques a homossexuais não são outra coisa senão reminiscências despertadas da cama de ferro de Procusto.  “Mas, não é a diversidade uma característica de homens e mulheres? Então,  por que insistir em obrigar homens e mulheres a viverem segundo os mesmos padrões e ideais, forçando-os a ajustar suas vidas aos conceitos pré-estabelecidos?”

Acautelemo-nos: o espírito, à solta, do crudelíssimo bandido mitológico ainda não encontrou a quietude do melhor sono; ressurge impondo a sua régua mutiladora, ora fisicamente, ora psicologicamente. Visível ou invisivelmente, a cama de Procusto pervaga por diversos ambientes inclusive nas escolas. “Alunos “diferentes” têm sido mutilados em suas características em nome do padrão social”. Muitos são os que tentam adequar os outros aos seus imperativos, forçando-os a entrarem nas suas medidas.

Que não sejamos acometidos da odiosidade que faz apertar o gatilho contra os que são “diferentes” ou pensam de modo diverso. A diferença entre pessoas é da essência do mosaico de povos. Que Deus abençoe a todos, sobremaneira os que, por serem “diferentes” são molestados pelos procustianos, simpatizantes da cama de ferro da intolerância, dentre os quais conhecidos apóstolos da intransigência: figuras da política, célebres redatores, etc.   

segunda-feira, 6 de junho de 2016

AS VELHARIAS DO JUDICIÁRIO


AS VELHARIAS DO JUDICIÁRIO

Valério Chaves
Desembargador inativo

                 Seria pouco realista esconder que nos últimos cinquenta anos, a sociedade brasileira passou por profundas transformações com os avanços da ciência e da tecnologia projetando nos indivíduos comportamentos e entendimentos diferentes de costumes do passado.
                Apesar dos avanços, inclusive no campo político-institucional, o universo jurídico brasileiro permaneceu distanciado da realidade prática na psicologia do povo e preso ao império do conservadorismo pernicioso.
                Mantendo-se na contramão dos costumes modernos como um paradoxo explícito, permanece em pleno vigor na legislação brasileira um verdadeiro rosário de velharias ou expressões inúteis concebidas sem nenhuma relação com a índole do povo e desajustadas às ideias fundamentais à preservação de valores sociais da atualidade.
                Em pleno século XXI, infelizmente, ainda temos de conviver com leis, decretos e regulamentos feitos e adaptados aos usos e costumes de séculos passados, inalterados e intocáveis como as “cláusulas pétreas” das chamadas Constituições do Estado burguês de direito.
                Na própria legislação codificada, não obstante as recentes reformas introduzidas, permanecem em vigor diversas figuras jurídicas praticamente inúteis e desconhecidas como: herança jacente, anticrese, codicilos, servidão, álveo, aguestos, avulsão, vícios redibitórios, colações, nascituro, embargos infringentes, cartas testemunhais, homogação do penhor legal, avaria grossa e tantas outras nomenclaturas que, pelo desuso, a grande maioria dos indivíduos nada sabe sobre sua serventia.
                Sem falar numa infinidade de leis esparsas e pontuais, parece temerário supor que num país onde a Constituição garante a todos pleno acesso à informação e à Justiça, ainda se possa conviver com vulgaridades jurídicas incapazes de responder com urgência aos anseios da população.
                A julgar pelas aspirações predominantes clamando por uma prestação jurisdicional mais célere, torna-se cada vez mais imperiosa e justificável a necessidade de pôr fim a tantas excrescências permissivas da chicana e da protelação do processo judicial brasileiro.    

domingo, 5 de junho de 2016

Seleta Piauiense - Hermes Vieira


NORDESTE

(Introdução)

Hermes Vieira (1911 - 2000)

Meu Nordeste feiticeiro,

Morenão de brônzeo peito,

Genuíno brasileiro,

Eu me sinto satisfeito

Em ser filho de um teu filho

E no chão por onde trilho,

Que venero com respeito;


Meu Nordeste das moagens

Nos engenhos de madeira,

Dos açudes, das barragens,

Da lavoura rotineira,

Das desmanchas de mandioca,

Do foguete-de-taboca

Irmão gêmeo da ronqueira;


Meu Nordeste onde os velórios

São rezados no sertão,

E improvisam-se os casórios

(Sem juiz, sem capelão),

Os padrinhos e os compadres,

As madrinhas e as comadres,

Na fogueira de São João;


Meu Nordeste do bornal,

Rifle, bala e cartucheira,

Da "lombada" e do punhal,

da "garruncha" e da peixeira,

Do cacete e do facão,

Com que um cabra valentão

Desmantela festa e feira;


Meu Nordeste em rede armada

(De algodão ou de tucum),

Aguardando a maxixada

Com quiabo e jerimum,

Mel, canjica e milho assado,

Feijão verde e arroz torrado,

Na semana de jejum;



Meu Nordeste a boi de carro...

Carro-de-boi do Nordeste,

Tosco, humilde, simples, charro,

Submisso e a nada investe,

Que, arrastado estrada afora,

Range, grita, canta e chora

Ajoujado à canga agreste;

sábado, 4 de junho de 2016

A vingança de Nabucodonosor


A vingança de Nabucodonosor

José Pedro Araújo

Nabucodonosor não era uma ave igual às outras, seu dono pôde verificar isso desde o início quando ele chegou por ali, adquirido em uma feira da capital. Pequeno ainda – e plumagem tingida de azul para agradar à meninada - já se mostrava cheio daqueles costumes somente vistos nos seres superiores, inigualáveis, naqueles que vieram predeterminados a não se comportar como o grosso dos da sua espécie. E ele procedia sempre assim, empinado, orgulhoso, pescoço em riste, desconfiado com o ser humano que adentrava no seu espaço para trazer-lhe comida ou agrados.

“Esse bicho é diferente dos outros”, pensou o homem logo que o viu assim, com aquele jeito afetado, mantendo-se à distância e comportando-se como um nobre, munido daquela pose altiva. Foi adquirido mesmo assim. Não para fazer às vezes de brinquedo para crianças. Foi adquirido porque era diferente.

Ganhou logo o nome do Rei da Babilônia, Nabucodonosor. Entre os doze de sua espécie que vieram habitar o quintal da casa, era um dos três machos. As outras nove fêmeas, à medida que o tempo ia passando, cercavam-no de cuidados cada vez maiores o que não tardou a despertar ciúmes nos outros dois companheiros de sexo. Esse sentimento foi passando de um simples desconforto inicial, para uma grande aversão, culminando com uma disputa tão acirrada por espaço que chegou ao extremo da violência física. E nesses momentos, ele mostrou que era realmente diferente, batendo, em sequência, seus dois contendores. Surrou-lhes tanto que ganhou da parte deles uma reverência total, inconteste. Passaram estes da qualidade de opositores, para a de fieis escudeiros.

            Mas o destino das aves emplumadas da sua espécie é sempre fazer parte de algum banquete, na qualidade de repasto para os presentes, não na de convidado. E assim acontecia sempre que o dono do galinheiro encontrava alguma razão para mudar um pouco o cardápio. E esse destino negro fez com que, paulatinamente, seus pares fossem sendo eliminados um a um, quando chegaram à fase adulta. Só sobrou ele. 

Nesse período, já era uma ave de porte avantajado, belíssimo na sua vestimenta de penas brancas, e mais compenetrando ainda. Não se deixou abater pela perda de seus vassalos. Contrariamente, mostrava-se cada vez mais arredio, arrogante, avesso a qualquer aproximação com o pessoal da casa. O chefe da família, que o observava desde o início, e o admirava, apesar da esnobação de Nabucodonosor, era o seu grande defensor, e não permitia que ele tivesse o mesmo fim de seus companheiros.

- O quê esse galo tem de tão importante que você não permite que o levemos à panela, homem!? – indagava a mulher cada vez que era impedida de lançar mão no bicho, transformando-o em uma gostosa iguaria.

- Então você não está vendo, mulher! Ele é o nosso grande Nabucodonosor, o rei desses quintais – respondia orgulhoso.

- E para que nós precisamos de um rei no nosso quintal? – irritava-se a mulher.

- Para alegrar as nossas madrugadas com o seu canto eterno. Lembra-me minha infância na roça, quando eu acordava à noite para ouvir o canto desses bichos. Era uma festa. Um cantava perto, outro respondia mais distante, outro mais distante ainda, até não se ouvir mais nada. E ai o primeiro começava tudo novamente! Esse aí traz o sertão para dentro da minha casa aqui na cidade. – Respondia orgulhoso e saudoso o homem.

A conversa terminava sempre assim, e Nabucodonosor ia sempre escapando de ter o seu pescoço decapitado.

Não se sabe se por desconhecimento desse assédio cada vez maior, ou se por conta da sua herança nobiliárquica, o certo é que o bicho mostrava-se cada vez mais compenetrado e refratário à aproximação com o pessoal da casa. Nem mesmo o seu grande defensor era tratado de maneira diferente, e isso só fazia aumentar o número dos que lutavam pela causa da sua extinção pura e simples; queriam vê-lo convenientemente servido em postas no almoço de Domingo.

Mas, estranhamente, seu defensor arguia com ardor sempre maior, lutando pela sua salvação. Uma coisa que não conseguiu, contudo, foi livrá-lo do cativeiro atroz. Passou o seu “rei” a viver aprisionado, amarrado pelos pés para evitar que atacasse as pessoas que por ventura adentrasse ao quintal. Território Nabucodonosor já considerava como seu reino indevassável.

Não se sabe se pelo fato de ter sido mantido em cativeiro, o certo é que o bicho passou a se mostrar um pouco mais dócil. Não sabiam que isso era fruto do amadurecimento dele, da sua esperteza. O fato é que Nabucodonosor ganhou mais liberdade, recebeu permissão para se deslocar pelo quintal livremente, e seu canto melhorou sensivelmente, voltando ao nível melódico de quando estava ainda com o seu séquito intacto. Nos últimos tempos, sua ode lhe saía triste, tremido, e sem força, quase não ultrapassava os limites do próprio quintal. Agora não, soltava seus solfejos pelos ares qual um menestrel medieval, numa tentativa de agradar a sua amada enclausurada nas alturas da torre de um castelo fictício.

E seu território foi se expandindo, se expandindo, já podia até andar pelo gramado da frente da casa. E nesses momentos, espiava interessadamente para a rua, observando o vai-e-vem das pessoas e dos automóveis que se movimentavam livremente.

Certo dia arriscou uma subida na mureta baixa que protegia a casa da rua propriamente dita. Gostou de ficar ali em cima, em um ponto de observação acima do nível do solo, mas sempre voltava para dentro, para o seu quintal. Até mesmo a dona da casa passou da desconfiança estremada a um estágio de tolerância sob vigilância. O preço de uma bicada que o galo aplicara na sua caçula, estava lhe custando muito caro ainda, precisaria de muito tempo para que fosse esquecida.

Mas Nabucodonosor possuía o sangue quente dos guerreiros conquistadores, e não tolerava quem o confrontasse com brincadeiras fora de hora ou mesmo com gracinhas que considerava carregadas de pejoração. Essa assertiva foi confirmada pelo menino Bruno, um vizinho que morava em uma casa próxima ao território de Nabucodonosor. Garoto brincalhão, o garoto estava ai pelos seis anos de idade, no auge da sua curiosidade, e por isso mesmo explorava as cercanias de sua residência, sempre sob os olhos cuidadosos da mãe. Nesse dia, estava Nabucodonosor empoleirado em seu ponto preferido de observação, sobre o muro, quando Bruno se aproximou acompanhado por Andrey, um garoto um pouco mais novo, mas extremamente curioso também. Vinham subindo a rua, brincando, espantando os besouros e borboletas que pousavam sobre as flores dos imensos jardins que enfeitavam as largas calçadas.

Um pouco mais abaixo, conversavam com o dono do galo à sombra de um frondoso ficus, seu pai, o pai do menino Andrey e o avô deles dois, pois eram primos. Por isso, de onde se encontravam, os homens procuravam não perder as duas crianças de vista.

Quando já estavam próximos do lugar aonde o galo se encontrava no seu ponto de observação, cerca de uns cinqüenta metros de distância da sua casa, Bruno chamou a atenção do primo.

- Olha ali, Andrey. Que galo bonito!

A ave não se mexeu. Continuou lá, altivo, sem demonstrar o mínimo interesse pelos observadores que se aproximavam solícitos dele. Depois de admirá-lo por um bom tempo, Bruno resolveu mexer com o galináceo e começou a jogar-lhe alguns seixos que trazia nas mãos, no que foi acompanhado por Andrey.  Os meninos arremessavam as pedrinhas e riam gostosamente com a reação que o galo tinha agora. Nabucodonosor, para não ser atingido, pulava de um lado para o outro, abrindo as poderosas asas para se equilibrar sobre o muro. E isso serviu de estimulo aos dois garotos que se aproximaram mais para conseguir acertá-lo em cheio.

O que era brincadeira para os meninos, passou a ser encarada pelo galo como um acinte, uma agressão despropositada contra seus direitos à tranqüilidade. E ele, que não admitia nenhum desrespeito à sua condição de nobre na sua espécie, começou a indignar-se e a perder o autocontrole. E foi então que, abrindo as asas até ao limite, lançou-se no espaço em direção aos garotos.

Foi um vôo curto, mas parecia um Condor que se lançava do alto de um penhasco para o espaço infinito. As garras afiadas, e os esporões amoladíssimos estavam prontos para atingir dolorosamente a quem o estava molestando naquele momento.

Quando os meninos viram o salto majestoso de Nabucodonosor em direção a eles, partiram em desabalada carreira rua abaixo. Tentavam chegar até ao local em que estravam seus parentes. E Nabucodonosor, cada vez mais furioso, corria atrás deles com velocidade crescente. As asas agora abertas lhe davam um aspecto de uma aeronave que tentava levantar vôo sem, contudo, conseguir sair do solo. Saltitava, na verdade, na tentativa de voar, pois acabava voltando ao solo. Mas se não conseguia voar, empreendia uma velocidade grande, incerta, é verdade, mas crescentemente perigosa para os dois guris.

Bruno olhou para trás, e o que viu o deixou apavorado, razão pela qual soltou um grito de terror que ecoou pela rua inteira. Andrey, um pouco menor que o primo, estava ficando para trás na longa carreira que empreendiam, ficando à mercê do galo. Também já vinha gritando a plenos pulmões, completamente aterrorizado com o que adivinhava está prestes a acontecer.

Mas o galo, cheio de ódio e com gana de atacar dolorosamente a quem ele achava que o tinha destratado, emparelhou com Andrey e, sem nem ao menos olhar para ele, o ultrapassou na corrida. As asas que não conseguiam fazer com que aquela ave pesada alçasse voo, elevavam-no do solo por pequeníssimos instantes, e depois depositavam-no novamente sobre a calçada, mostrando, na verdade, que ele se deslocava aos pulos. Tal fato conferia ao bicho um aspecto aterrorizante, e ele já se encontrava próximo ao menino que considerava o seu verdadeiro inimigo.

De onde estavam os homens ouviram os gritos dos meninos e, ao observarem para saber a razão de tamanho alarido, ficaram preocupados com a cena dantesca que avistaram, e com a iminente agressão que se prenunciava. Nabucodonosor já estava quase alcançando o menino Bruno que, já sem forças, corria desequilibrado, quase flutuando, mantendo-se a muito custo de pé, sem cair ao chão. Os braços abertos do guri, tal qual as asas de Nabucodonosor, era o que o mantinha ainda em posição vertical, de pé.

Mais rápido que os demais, o pai de Andrey correu em socorro dos meninos e ainda teve tempo de amparar Bruno nos braços antes que ele caísse desfalecido e fosse atacado pelo feroz bípede.

Nabucodonosor não se intimidou, contudo. Estava já tomado por um furor animal que o fez atacar o garoto, e também quem o amparava. Os outros homens, vendo que a situação estava passando de crítica, atacaram o galo a pesadas tentando afastá-lo de sua pretensa presa. A muito custo fizeram com que ele refluísse do seu intento e voltasse para o seu território.

Passado o susto, com o garoto Andrey já devidamente sob os cuidados dos parentes, os salvadores caíram em estrepitosa gargalhada. Quanto aos garotos, continuavam em estado de terror absoluto, com os olhos quase a saltar das órbitas.

Os homens riram por um bom período até não conseguirem suportar o incômodo na barriga. Um pouco aliviados, e outro tanto admirados com a valentia daquele animal que não demonstrara, em momento algum, receio pela presença deles, recolheram os dois meninos à segurança do lar.

Todavia, esse incidente quase teve resultados catastróficos para o nobre Nabucodonosor. Preocupados em manter a política da boa vizinhança, e com receio de que o reizinho viesse a atacar outras crianças, decidiram sacrificar o belo galo.

Mais uma vez seu protetor entrou em ação para salvá-lo do banquete do qual ele não tinha o menor interesse de participar. E, em nome da diplomacia e da boa política, decidiu agir. Na noite que antecedeu ao previsto banquete, o galo foi sorrateiramente retirado de lá, e levado, às escondidas, para o sítio de um amigo que possuía um mini zoológico com várias espécies de animais e aves, muitas da mesma espécie de Nabucodonosor. Lá o fugitivo se encontrou com belas companheiras originadas de muitos países, como a inglesa Bianca Leghorn, as americanas  Mimi Rhode Island Red,  Angel New Hampshire e  Desirée Plymouth Rock Barradas, entre outras, todas logo incorporadas ao seu novo séquito real. Para isto, não encontrou muitas dificuldades, pois os espécimes masculinos que antes reinavam no terreiro, foram vencidos um a um e passaram a fazer parte da sua corte, servindo-o e adotando-o como novo e verdadeiro líder. Chegara novo rei ao pedaço.


Até que Nabucodonosor gostava de suas novas pretendentes. Eram belas e educadas, de fina estirpe e o tratavam com carinho e devoção. Mas, apaixonar-se mesmo, só aconteceu com uma: a bela Gail White América, de andar gingado e orgulho nas alturas. Portadora essa índole também real, fazia questão de não acompanhar as outras amigas quando o assunto era bajular o recém-chegado rei do pedaço. E esta talvez tenha sido a razão para ela ter sido escolhida para rainha. A mais bela e inteligente rainha que se conheceu por aquelas terras em uma centena de anos. Quanto a Nabucodonosor, viveu feliz por muitos e longos anos e deixou numerosa prole que hoje se espalha por vários reinados onde ocupam os mais importantes cargos na realeza.

quinta-feira, 2 de junho de 2016

HISTÓRIAS DE ÉVORA - Capítulo VIII


HISTÓRIAS DE ÉVORA

Este romance será publicado neste sítio internético de forma seriada (semanalmente), à medida que os capítulos forem sendo escritos.

            Capítulo VIII

As montanhas de Minas

Elmar Carvalho

Marcos estava de pé, a contemplar umas fotografias e umas pinturas, postas em belas molduras afixadas na sala. Madalena, ao retornar, postou-se a seu lado. O jovem, ao longo de sua vida, jamais se esqueceu do perfume agradável, que evolava da mulher e lhe ficou como que impregnado nas narinas para sempre. Com voz suave, quase em murmúrio, ela lhe perguntou:
– Você gosta de fotografia? E de pintura?...

O rapaz se voltou para ela, e a fitou nos olhos. Na verdade, enquanto olhava os quadros, esquematizara um breve comentário, para tentar impressioná-la.
– As fotografias foram tiradas por mim, nas vezes em que visitei Congonhas, e as pinturas são mais ou menos da mesma época, quando ainda morávamos em Belo Horizonte.

As fotografias, em preto e branco, mostravam os profetas e a Última Ceia, obras de Antônio Francisco Lisboa, o Aleijadinho. As pinturas a óleo retratavam os casarões de Congonhas e uma bucólica ermida, vendo-se ao longe as montanhas de Minas. Em lugar à parte ficava uma pintura moderna.

Marcos já tivera oportunidade de ler uma biografia do Aleijadinho, na qual foram expendidos comentários sobre algumas de suas obras, inclusive sobre as que se encontravam expostas nas fotografias da sala. Também lera alguns livros sobre pintores famosos, de diferentes escolas, com ênfase no modernismo. Quando seu pai, meses atrás, comprara uma câmera fotográfica teve o cuidado de ler o manual, em que eram ministradas breves lições sobre essa arte.

Portanto, ao comentar as fotografias, elogiou a composição da imagem, o perfeito enquadramento das esculturas. Em algumas, a foto fora tirada de baixo para cima, ficando a obra de Aleijadinho recortada contra o céu, de forma centralizada. Em outras, ficava a estátua num dos lados, para que se pudesse ver ao longe o casario e as serras. Via-se que ela tivera o cuidado de procurar diferentes ângulos, alguns inusitados.

O rapaz, pela direção da luminosidade, percebeu que foram batidas em diferentes horários; teceu comentários elogiosos sobre o aproveitamento do jogo de luz e sombra, que bem servira para ressaltar certos detalhes da imagem, seja a expressão do rosto e eventuais rugas, seja a composição das vestes com suas dobras. Disse que se notavam certos “exageros” do barroco, alguma desproporção entre o tronco e as pernas, mas que nada disso empanava a genialidade do mestre brasileiro; de quebra, ainda evidenciou alguns aspectos marcantes de sua biografia.

Quanto às pinturas foi mais sintético. Enalteceu nas figurativas a perfeição da proporcionalidade, o domínio da técnica da perspectiva e o uso clássico e realístico das cores, embora tenha dito perceber nas pinceladas lições do impressionismo. Falou com entusiasmo de sua pintura moderna, sublinhando que houvera um perfeito casamento entre o cubismo e a pintura abstrata, e que isso lhe dava um cunho de originalidade.

Ela demonstrou muita admiração por seus conhecimentos e por sua capacidade de observação e de crítica, mormente levando-se em conta a sua idade. Marcos foi modesto, e lhe esclareceu que isso só fora possível graças aos livros de arte plástica que lera, quase todos por empréstimo da biblioteca pública.

Acrescentou que seu pai, uma ou duas vezes por mês, costumava comprar a revista O Cruzeiro; que gostava de olhar com atenção as suas fotografias e reportagens fotográficas, sobretudo as de autoria do grande fotógrafo piauiense José Medeiros. Disse que havia lido, já não se lembrava em que revista, um pequeno ensaio sobre fotografia.    

Madalena era formada em arte plástica, e fora professora de desenho e pintura durante pouco tempo, já que tivera de acompanhar o marido em suas remoções funcionais. Era culta, uma vez que era leitora voraz, embora fosse discreta em sua conversação, porquanto detestava empáfia e exibicionismo. Tirou algumas dúvidas do rapaz, corrigiu-lhe pequeno equívoco, e chamou-lhe a atenção para a expressão facial dos apóstolos e de Cristo, e para a muda eloquência dos gestos e postura.

Convidou Marcos a voltarem à mesa, para que ele cumprisse a sua missão. Ficaram frente a frente. No decurso da conversa, mesmo com o seu natural retraimento, o jovem lhe pôde admirar o belo rosto, emoldurado pela não menos bela cabeleira, e lhe viu o generoso (mas não exagerado) decote, que lhe permitiram imaginar os seios como sendo perfeitos e altaneiros.


Associou-os aos morros das pinturas, executadas pela dona que os ostentava. Vieram-lhe à lembrança os versos de Alberto de Oliveira. E ele viu, através do que apenas lhe era entremostrado, “montanha por montanha, / Longe as montanhas de Minas”.   

quarta-feira, 1 de junho de 2016

Estação primaveril de Teresina


Estação primaveril de Teresina

José Maria Vasconcelos
Cronista, josemaria001@hotmail.com

         Só temos duas estações, inverno e verão? Mentira. É preciso conhecer  boa parte do Nordeste. Especialmente, Teresina, estigmatizada pelo calor do verão, não reconhecida e desfrutada em período primaveril.

         A primavera é uma das quatro estações do ano. Ela ocorre após o inverno e antes do verão. No hemisfério sul, onde está localizado o Brasil, a primavera tem início em 22 de setembro e termina no dia 21 de dezembro. Claro que esses últimos meses do ano coincidem com o tórrido BR-O-BRÓ do Nordeste.

         Temos primavera, sim, mas logo após o período chuvoso, no final de abril. A principal característica da primavera é a estação mais florida do ano. Esse período é marcado por belas paisagens formadas pela natureza, com uma grande diversidade de flores anônimas. No primeiro dia de maio, descubro que ainda existem devotos da natureza, que enfeitam janelas e portas com ramos de flores. Linda e romântica tradição, que se vai, meio à selva de pedra, asfalto e cimento.

A temperatura, durante a primavera,  bastante agradável. No entanto, importante ressaltar que as estações são bem definidas, apenas na Zona Temperada do Norte (entre o Círculo Polar Ártico e o Trópico de Câncer) e na Zona Temperada do Sul (entre Círculo Polar Antártico e o Trópico de Capricórnio).

 A reprodução de muitas espécies de árvores e plantas, em nossa região, inicia-se no período chuvoso do primeiro semestre. Em seguida, nos meses de maio, junho e julho, os campos se enchem de vegetação florida, e as fruteiras festejam o parto das atas, cajás, seriguelas, bananas e mil outras variedades. Caju e manga sobram no verão, brindado com o florido encantador dos paus d’arcos.

Maio, junho e julho, tempo bom, temperatura agradabilíssima, em torno de 25 a 30 graus, manhãs serranas, especialmente na zona rural, mais fria. Não foi à toa que nossos antepassados escolheram o período para se fartar de milho cozido, canjica, frutos da terra, maria isabel, além das coloridas noites forrozeiras. Quem há de faltar a tantas regalias regionais? Ou esquecer louvores ao Senhor da vida e das culturas?

Desfrutemos a estação primaveril, enquanto o calorão não chega. Aquele calorão, que muita gente só sabe choramingar, sem reconhecer o milagre do manjar e das codornizes. Essa gente lembra hebreus pessimistas, descrentes das bênçãos divinas. Que só recordavam as panelas de carne da escravidão egípcia. A poucos quilômetros de tomarem posse da Terra Prometida, Moisés enviou espiões para conhecer, de perto, a região. Regressaram apavorados, contando histórias de gigantes temidos, causando enorme revolta ao profeta e aos companheiros. O profeta enviou outro grupo, que retornou trazendo grande quantidade de frutas. E confessavam: “Encontramos uma terra onde corre leite das cabras e mel das tâmaras!”

A autoestima de muitos teresinenses anda atarantada, que só hebreu errante do deserto, cuja miopia não consegue contemplar nem desfrutar a natureza exuberante e clima ameno da estação primaveril. Só dá conta do calorão que ainda não chegou.  Ergamos a taça de vinho e agradeçamos a bênção de um paraíso entre dois rios.   

terça-feira, 31 de maio de 2016

O Gato e o Rato

            
O Gato e o Rato

Valério Chaves

            Certo dia ao cair da noite, um rato dentro da selva, retornava para dormir na sua toca depois de bem-sucedida caçada, quando avistou um gato que passava por perto em busca de alimento.
            Eis que o rato, ao pressentir o iminente perigo de morte, sem pensar duas vezes, se escondeu dentro da toca, morrendo de medo.
            Cauteloso, de vez em quando botava a cabeça para fora para ver se o gato ainda estava por perto lhe esperando.
            Ocorre que o gato, faminto, não estava disposto a desistir de comer o rato e, por isso, resolveu esperar o tempo que fosse necessário.
            Depois de algumas horas, eis que o rato, certo de que o gato já tinha ido embora, colocou a cabeça para fora a fim de certificar seu pressentimento.
            No entanto, levou um temendo susto quando avistou o gato com os olhos bem abertos, miando, morto de fome. E, como um raio, vupt…voltou para o seu esconderijo.
            Cada vez que tentava sair da toca, ouvia o miado do gato e, com mais medo, voltava a se esconder.
            E assim nesse vai e volta, o tempo foi passando.
            Mais tarde, cansado de tanto miar e esperar, o gato teve uma ideia para fazer o rato sair sem ter medo de nada. O que ele queria, na verdade, era comer o rato.
            Lembrou-se, na hora, que rato não tem medo de cachorro, e pensou: em vez de miar, vou latir imitando um cachorro, e assim, pego fácil esse rato esperto.
            Sucedeu que quando o rato mais uma vez botava a cabeça para fora para ver se o gato ainda lhe esperava, e ao ouviu latido de cachorro, disse consigo, soberbo:
            - Ah! Agora posso sair sem sobressalto. Enfim, o amigo gato, talvez cansado de tanto miar sem resultado, resolveu ir embora, deixando livre o caminho.
            - O que ouço agora é somente latido de cachorro, e de cachorro eu não tenho medo.
             Em seguida, restabelecido do susto que levara, saltou para fora da toca.           –          - Pronto, estou salvo!
            Porém, eis que de repente, o gato que observava há bastante tempo, com um só golpe, abocanhou o rato, sem piedade.
            - Meu jantar desta noite está garantido – exclamou prazerosamente.
            O rato, debatendo-se, sabendo que lhe restavam poucos minutos de vida, fez uma perguntar ao gato, a título de curiosidade:
            - Amigo gato, sei que certamente vou ser devorado agora, mas por favor, me diga de onde tirou essa ideia de imitar cachorro latindo? - pois até onde sei, gato só sabe miar.
            Então o gato, prontamente, respondeu em tom comovido:
            - Amigo rato, nos dias atuais, gato que não souber falar mais de uma língua morre de fome.

Moral da história:
Na hora do aperto quem não souber usar a inteligência não obtém vantagem.
            --------------------------
           Valério Chaves

            Des. inativo do TJPI.

domingo, 29 de maio de 2016

SACRIFÍCIO


SACRIFÍCIO

Elmar Carvalho

Abrir meu ventre
como uma rosa de carne
e de suas vísceras multicores
pétalas dispostas em arabesco
projetar uma poesia
feita de flores e de fezes.
Cortar meu corpo
e retalhar minha alma
e fazer uma poesia
de matéria e de espírito
e morrer na última palavra
do último verso por nascer.
Drenar
minhas veias e
com seu sangue
regar um poema canibal
que não fale de morte.
E escrever a obra-prima
com o sangue da alma.

           Parnaíba, 17.05.78  

sábado, 28 de maio de 2016

DEPUTADO MARANHÃO NA LINGUAGEM DO ÃO


DEPUTADO MARANHÃO NA LINGUAGEM DO ÃO 

Jacob Fortes

Por recôndita motivação o deputado Maranhão tomou a decisão de decretar, sem respaldo na Constituição, sequer sessão de votação, a ab-rogação do processo de impeachment da Presidente da nação. Mas que razão teve o Maranhão para esse gesto trapalhão? Na imaginação popular o que não falta é suposição: pressão; coação; imposição, gosto pela confusão; ambição, cavilação; dissensão; desqualificação.

Mas Maranhão deu-se mal com a despropositada decisão: de reputação no chão, sem admiração, sem-razão e engolfado na própria atrapalhação, acabou solitário, na reclusão de uma ilha de desolação. Melhor reparação faria o sisudão Maranhão se optasse pela abdicação da função.  Afinal, o impulsivo gesto, digno de reprovação e admoestação, ao invés de render glorificação, prestou-se à comprovação de que Maranhão não tem qualificação para a direção da magna congregação legislativa. A circunstância impõe a amarga obrigação (por parte dos que, por aclamação, fizeram-no vice da função) de torná-lo interdito por meio de exautoração. É a medicação para evitar que arroubos de curta duração, — que encerram diminuição à casa do povão — possam causar outra vexação à nação. Sua ascensão (de vice a titular) é galão que constitui imerecida distinção. Ô Maranhão, para com essa obsessão! Se a colmeia de deputados não te aceita mais como zangão por que a tua insistência em permanecer, decorativamente, sem a mínima condição, à frente da função, justamente tu, avesso à elocução e afeito a desatinos que conspiram contra a Constituição? A casa precisa de quietação.  Controla tua intemperança; para com essa malsinada inspiração de protagonizar capilossadas que acabam por te chamar à razão e não esquece: esse gesto, sem ordem, sem arte, sem noção, exige desculpas ao povão do teu rincão, decerto cheio de decepção com o papelão que brotou da tua imprecaução. Por muito tempo os eleitores hão de ouvir os ecos da detonação da tua ação; haverás de ser pasquinado por essa extravagante confusão. Aliás, essa “obra-prima” — que, com excesso e descuidoso empenho, esculpistes, sem o clarão das luzes, para maldição da tua reputação — constitui inovação perante o teu preletor, Cunha, o poderoso chefão.    

quinta-feira, 26 de maio de 2016

Histórias de Évora - Capítulo VII


HISTÓRIAS DE ÉVORA

Este romance será publicado neste sítio internético de forma seriada (semanalmente), à medida que os capítulos forem sendo escritos.

            Capítulo VII

A balzaquiana Madalena

Elmar Carvalho

Certo dia, quando Marcos fazia o primeiro semestre do terceiro ano ginasial, dona Marciana, a diretora do Liceu, imponente, quase marcial, verdadeira matrona romana, entrou na classe e pediu à professora para transmitir uma mensagem, na verdade, em suas palavras, uma convocação ao civismo, ao exercício da cidadania e da solidariedade.

De posse do diário de classe e de uma lista com o nome das principais ruas da cidade, ela pediu para que os alunos fossem de casa em casa falar da importância da campanha de vacinação contra a varíola, e pedissem para que as famílias não deixassem de comparecer aos postos de vacinação, no período indicado.

– Vocês estarão prestando um grande serviço de civismo e de amor ao próximo. E com isso estarão contribuindo para que essa doença seja erradicada de nossa mui amada e invicta Évora.

Não sabia Marcos ao certo de que Évora seria invicta, pois não lhe constava que ela tivesse participado de alguma guerra ou batalha. No máximo a sede da Fazenda Ingazeira, que quatro ou cinco anos depois seria destruída pelo proprietário, para fazer um centro comercial, abrigara uma tropa do tenente Simplício José da Silva, quando este seguira em perseguição ao comandante português João José da Cunha Fidié, em verdadeira guerra de guerrilha, com algumas escaramuças, durante trecho do percurso do velho cabo de guerra em direção a Caxias – MA.

Coube-lhe percorrer duas grandes ruas, no centro da cidade. Embora seus pais fossem zelosos na criação dos filhos, induzindo-os à responsabilidade nos estudos e no respeito ao próximo, mormente aos mais velhos, e a não praticarem o mal, Marcos era criado com bastante liberdade e sem necessidade de executar trabalhos domésticos ou outros, de forma que esse serviço de visitação aos moradores das ruas Cajueiro e Marechal Taumaturgo de Azevedo foi o primeiro serviço de monta, que iria realizar.

Apesar de sua inexperiência laboral, encarou a missão com muita responsabilidade e afinco. Foi metódico e determinado, e entrou em todas as casas, fossem as mais ricas ou as mais pobres, com exceção apenas, claro, das que se encontravam fechadas, que registrou, para depois retornar. Explicava com toda paciência as vantagens da vacinação; esclarecia que não havia efeitos colaterais e, se necessário, anotava em um pedaço de papel os dias, o horário e o endereço dos postos em que haveria a aplicação. Ele mesmo ficou um tanto admirado de seu senso do dever e de responsabilidade, e incorporou essas virtudes por toda a sua vida, sobretudo quando veio a se tornar servidor público federal.

Numa das casas da Rua Cajueiro encontrou Madalena. Teria ela em torno de 35 anos de idade, um pouco mais, um pouco menos. Estatura mediana, morena, de curvas bem definidas, porém esbelta, talvez porque não tivera filhos. Os cabelos castanhos, ondulados, lhe desciam até a altura dos ombros. A sensualidade lhe parecia emanar de todos os poros.

Marcos a conhecia de vista, e lhe admirava a beleza e a elegância, e mais ainda o discreto requebro de seu caminhar, algo sinuoso, quase a insinuar uma dança. Seu marido era um médico do SESP, já considerado um tanto envelhecido. Talvez fosse vinte anos mais velho que ela, mas a calvície lhe emprestava bem mais idade. Ambos eram naturais de Belo Horizonte. Madalena recebeu o rapaz com um leve sorriso, e notando-lhe certa timidez o tratou com muita cortesia.


Pediu que Marcos se sentasse a uma grande mesa, que havia na sala, e pediu licença para fazer algumas recomendações à empregada, que se encontrava na cozinha. Quando retornou, poucos minutos depois, uma onda de inebriante e agradável perfume envolveu o ambiente.

quarta-feira, 25 de maio de 2016

LEMBRANÇAS DE RUI BARBOSA


LEMBRANÇAS DE RUI BARBOSA

Cunha e Silva Filho

                 Não sou  especialista das obras  jurídicas e literárias legadas  por Rui Barbosa nem tampouco da sua biografia. Sou apenas um admirador  do seu talento. O que exponho neste artigo são comentários  alusivos  a esse brasileiro afamado sobretudo pela sua  grande inteligência, saber  jurídico,  sua erudição espantosa,  seu conhecimento  humanístico, sua vocação  para as línguas  clássicas e modernas, alguns lances de sua  vida pessoal  que vim a saber, um dos quais  através  do meu pai, ou que eu mesmo  colhi da pouca leitura que fiz  da sua extensa  e variada obra. Nem mesmo cheguei a ler por inteiro  a importante  biografia  de Rui escrita por  Luís Viana Filho, membro da  Academia  Brasileira de Letras. Um velho exemplar tinha  desse livro na biblioteca de meu pai que,  por lapso de memória,  não  mencionei em livro que vou lançar  brevemente.
             Tanto no  período de adolescência em Teresina  quanto  no meu  tempo  de residência  no Rio de Janeiro,  a figura  de Rui esteve de alguma forma  presente no horizonte de minhas leituras. Primeiro,  através de textos   dele incluídos  em livros didáticos  e aqui me recordo de que, num livro do professor  Enéias Martins de Barros para os anos  do ginásio,  havia uma epígrafe   utilizada numa das primeiras páginas de um volume, que dizia (e de que jamais  esqueci):”Uma raça, cujo espírito  não respeita  seu solo e seu idioma,  entrega a  alma ao estrangeiro antes de ser por ele absorvida” Não me dei ao trabalho  de localizar a obra em que  essa frase   se encontra nem é meu propósito  nestas linhas.
           Ora, ao  reler ou relembrar aquela citação de Rui,  sempre a associei à condição dos cidadãos, no caso,  brasileiros,  que  preferem  falar melhor e escrever  uma, duas, três ou mais línguas estrangeiras sem se aprofundar, primeiro e principalmente, no seu  próprio idioma. Não é exagero o que lhe falo, leitor,  sobre  esse tipo de pessoa.Delas há e muitas. Não dominam  o vernáculo e já saem por aí  vendendo a alma ao  estrangeiro.
          Entretanto,  me parece procedente a  crítica de Rui dirigida  a  uma espécie  de  gosto  e de submissão  eurocêntrica ou  americanófila  não só de hoje mas no passado. Sendo um vernaculista extremoso, um fascinado  pela língua  portuguesa,  um  prosador  clássico, que bebeu nas fontes de Vieira,  de Camilo e de Castilho, ou como  didaticamente, Enéas Martins de Barros definiu suas qualidades  de estilo de linguagem, ao dizer que de Vieira aproveitou   a correção, de Camilo,  o vocabulário de Castilho,  a harmonia. Alfredo Bosi ( na sua História  concisa da literatura brasileira) refere também, na aquisição de seu   estilo, as contribuições da cultura clássica de Cícero, Quintiliano, Isócrates e, em língua  portuguesa,  ainda  inclui a influência do potencial  léxico de Herculano, a sintaxe de Bernardes
         Diante de tais atributos estilísticos,  Rui tinha  condições  de  censurar  aqueles   que relevavam a sua língua-mãe a um plano  secundário com  relação   à  outras línguas modernas. Com o seu espantoso  conhecimento  da língua portuguesa,  podia-se dar ao luxo de dominar  outras línguas,  como  o inglês, o espanhol, o francês, o alemão.
       Me contou meu pai – admirador  de Rui a ponto de, em Amarante, PI,  fundar uma  escola  a que deu o nome de Ateneu  Rui Barbosa -  que, certa feita,  no tempo  em que  morava no Rio  como estudante  salesiano,  tendo ido a um colégio em Petrópolis, lhe disseram que há uma semana  ali  havia  passado  Rui Barbosa  em visita  ao colégio. Um estudante,   vendo Rui Barbosa caminhando por um corredor à sua frente,  lhe dirigiu  essas palavras: "Viva  o reverendo (sic!) Rui Barbosa!” Rui,  voltou-se para ele e lhe deu um sorriso. Houve uma  gargalhada geral dos coleguinhas  do  pequeno  estudante.
      Na Academia   Brasileira de Letras,  da qual  Rui foi  fundador  junto com Joaquim Nabuco,  Machado de Assis e Lúcio de Mendonça, meu pai  dizia que só  por  um acadêmico  Rui revelava   especial  respeito do ângulo filológico  e de polemista,  o  exímio latinista  Carlos de Laet.
      Na voz do povo, Rui  era o máximo, o mais  inteligente brasileiro de então. Nascera em  Salvador,  em 1845. Morreu em Petrópolis em 1923.
      Ainda me relatou meu pai,  em  costumeiras conversas  comigo em Teresina,  que, uma vez, indo para Petrópolis,  Rui  começou a  conversar com um companheiro de viagem  sobre assuntos  gerais,  os quais,  depois,   se voltaram  para  temas de  medicina. A uma  certa  altura do diálogo,  o companheiro de Rui lhe perguntou: “O Sr. é médico?” “Não, sou   advogado.” “Pois, senhor,  eu tinha quase a certeza de que o senhor era médico pelo conheci mento  que revelou ter dessa  área de  estudos.”
      Perseguido por sua ideias políticas contrárias ao governo de  Floriano  Peixoto,   Rui viu-se obrigado a se exilar na Inglaterra.Logo que  pisou  em solo britânico,  Rui mandou afixar um cartaz  - creio -  no lugar em que foi  morar,  com os seguintes   dizeres: “Ensina-se inglês aos ingleses.” Esse período de residência em Londres, redeu-lhe uma obra Cartas da Inglaterra(1896).
     Jurista de fama  internacional, Rui Barbosa  teve o grande  privilégio de ser convidado  para representar o Brasil  na Segunda Conferência de Paz em Haia (Deuxième Conférence de la Paix. Actes et Discours, La Haye,1907), na qual  brilhantemente defendeu a situação das  “pequenas nações.” De sua  atuação formidável como orador   e  intelectual  de assombroso  conhecimento  jurídico, sendo aplaudido entusiasticamente por  diplomatas e estadistas presentes, veio-lhe a conhecida  antonomásia de  “O águia de Haia.”    
     Outra participação de alta relevância do grande estudioso, político, escritor,  tradutor   e orador  brasileiro  foi  a polêmica filológica   que travou com um seu ex-professor de língua  portuguesa de Salvador,  Dr. Ernesto Carneiro  Ribeiro a propósito da “Redação do Código  Civil Brasileiro.”  Dela   resultou uma obra   de alta profundidade filológica, Réplica (1903).       
     Essa  famosíssima  polêmica entre Rui e seu ex-professor de língua portuguesa merece uma síntese  de seus  fundamentos.  A raiz da polêmica   foi  a  redação do Código  Civil  a ser elaborado  pelo  jurista Clóvis Beviláquia  a pedido do  então Ministro da Justiça, Epitácio  Pessoa, no governo do presidente Campos Sales.  A redação  de Clóvis  Beviláquia  valeu-lhe  várias censuras  por parte de Rui Barbosa. Para contornar  esse impasse,  foi incumbido de  fazer a revisão do Código Civil o respeitado  professor, Dr. Ernesto Carneiro  Ribeiro.   
        Rui Barbosa, a despeito disso,   não  concordou com a revisão  feita pelo ex-mestre, sobretudo  no terreno da gramática e por isso apresentou, na condição de presidente da Comissão  do Senado,  várias  folhas de apontamentos  mostrando   suas discordâncias  gramaticais  em relação  à revisão de Ernesto Carneiro  Ribeiro, que, por suja vez, rebatendo as críticas de Rui, redigiu o texto “Ligeiras  observações sobre as emendas do Dr. Rui Barbosa”   e o fez publicar no Diário do Congresso.
       O Código  Civil  foi  aprovado, mas a polêmica entre Rui e seu  ex-professor continuou até que  Rui,  organizou seus  apontamentos  e suas  divergências  numa das obras mais  respeitadas  no  domínio da filologia  portuguesa, considerada pelos estudiosos  como um “monumento”  de estilo e de profundidade  de  conhecimentos  do vernáculo. 
      Foi a mencionada  Réplica. Seu ex-mestre, por seu turno,  não se deu  por vencido e resolveu  dar uma outra resposta  às censuras  de Rui,  fazendo vir a lume  a obra Tréplica, a versão em livro  criticando as emendas  que  Rui Barbosa lhe  fizera à  revisão do Código Civil de Beviláqua.
     Assim que cheguei ao Rio, em 1964,  adquirira um livrinho  das Edições de Ouro que constituíam  um apanhado de cartas de Rui Barbosa dirigidas à noiva, Maria Augusta. Não recordo mais do título. Contudo,  ficava admirado  do estilo  epistolar  de Rui à sua amada, com  comoventes  declarações de amor  e de  afetividade, escritas em estilo  menos   arcaizante,  menos clássico, e apenas  refletindo  o gênero  mais leve da comunicação  familiar  e amorosa. Li aquelas cartas de Rui no intervalo de viagens de  trem   do subúrbio  da Central para o centro do Rio nos meus primeiros  meses de vida nessa cidade.
         Me lembro de  que eram  cartas  cativantes  onde o  grande  escritor e homem publico  mostrava  seu lado  mais  íntimo de manifestar  seus sentimentos  com traços  até românticos. Me  vem à mente  outro livro que,  à época,  li de  Rui  Barbosa. Era um ensaio  biográfico  sobre José Bonifácio, um livro  digno  do melhor  estilo  ruibarbosiano. Esse ensaio  mencionei  no meu livro As ideias no tempo (2010).  E uma frase  dele me ficou marcada  na memória: “A morte nos cerca de todos os lados.” – sentenciava  Rui.   Outro  texto  fundamental que li de Rui é o conhecido “Oração aos Moços” -  um belíssimo  texto atualizado, na sua abrangência  ética, até para os dias de hoje.


        Por outro lado,  outra carta  de Rui que,  salvo erro,  li na obra  de Luís Viana Filho era uma carta  em inglês  de Rui a alguém no Brasil, não sei se endereçada a uma amigo ou a um familiar. Só relembro que a reprodução da carta escrita à mão, em fac-símile,   tinha uma letra miúda,  com  rasuras no corpo da missiva e, por incrível que parece, foi nessa carta que  aprendi o que em inglês  queria dizer a  linda  palavra "orvalho" (em inglês,“dew”), assim aprendida naquele contexto  epistolar e não num  texto  de uma  obra  de ficção ou poesia. A memória tem dessas coisas que nos surpreendem na aprendizagem de uma língua. Minha memória é visual, léxica,  fisionômica,  em geral sinestésica.