domingo, 13 de março de 2011

MANUEL BANDEIRA REVISITADO


M. PAULO NUNES

Neste meu carnaval sem nenhuma alegria, como diria Bandeira, passado em casa, longe do bulício das praias e ouvindo apenas o som, não de cuícas e tamborins dos velhos carnavais que não mais existem, mas de tambores, bumbos e cantorias sensaboronas (onde estão as velhas marchas e canções de antigamente?) e aproveitei, como há muito não o fazia, para fruir um pouco a companhia de velhos amigos, os livros, sobra de um acervo que nunca diminui; como fazer parar a compulsão pelas velhas leituras? Reli assim o velho João Ribeiro, de cuja medalha sou injustificadamente detentor, através de generosa homenagem de amigos da Academia Brasileira, haurindo mais uma vez a sabedoria de suas Páginas de Estéticas (Livraria São José, 1963); de Josué Montello, em sua prosa diarística (Diário do Entardecer – 1967-1977 – Editora Nova Fronteira, 1991); ou relendo salteadamente o Bandeira de Estrela da Vida Inteira, contendo suas poesias reunidas (Livraria José Olympio Editora, 1970).
Neste último, desejaria deter-me um pouco e acentuar que mais uma vez deixei-me impregnar por um sentimento lírico e elegíaco feito de mágoa, solidão e desencanto que me traz sempre uma profunda melancolia, que não é tristeza, mas a desolação do sentimento de perda pelas coisas findas, que já nele está presente, desde sua estréia com A Cinza das Horas. Além do mais, o velho bardo é um dos mais genuínos poetas brasileiros que conheço, não apenas por aproximar-se da linguagem popular, embora seja ele ele um poeta erudito, como expressa em um de seus poemas mais libertários dos velhos cânones da língua, que é “Poética”, de seu livro Libertinagem.
“Abaixo os puristas / Todas as palavras sobretudo os barbarismo universais / Todos os ritmos sobretudo os inumeráveis.”
A explicação para o fenômeno me ocorre encontrar em um passo, do autor de Os Tambores de São Luís, na obra já referida, quando se reporta à reforma estilística realizada por Guimarães Rosa para libertar-se dos cânones estéticos da língua tradicional, aos quais opõe a linguagem oral de seu livro de estréia – Sagarana “para surpreender, à luz de pequenas modificações estilísticas, o fiat genésico da explosão verbal que ocorrerá dez anos depois, com a publicação de Grande Sertão: Veredas e Corpo de Baile”, segundo sua próprias palavras. Mais tarde, desenvolveremos melhor este assunto.
Para finalizar, vejamos, a seguir, dois momentos da arte poética de Bandeira, o primeiro deles, na forma tradicional, ou clássica em que era exímio, no caso, o famoso soneto “Peregrinação”, de transbordamento lírico, de seu livro Estrela da Tarde; e o outro, “Consoada” sobre a presença da morte, uma constante em sua alta poesia, de um de seus últimos livros, Opus 10, já na nova estética pós-moderna.

PEREGRINAÇÃO

Quando olhada de face, era um abril.
Quando olhada de lado, era um agosto.
Duas mulheres numa: tinha o rosto
Gordo de frente, magro de perfil.

Fazia as sobrancelhas como um til;
A boca, como um o (quase). Isto posto,
Não vou dizer o quanto a amei. Nem gosto
De me lembrar, que são tristezas mil.

Eis senão quando um dia... Mas, caluda!
Não me vai bem fazer uma canção
Desesperada, como fez Neruda.

Amor total e falho... Puro e impuro...
Amor de velho adolescente... E tão
Sabendo a cinza e a pêssego maduro...
(Ob. Cit., p. 244)

CONSOADA

Quando a Indesejada das gentes chegar
(Não sei se dura ou caroável),
talvez eu tenha medo.
Talvez sorria, ou diga:
- Alô, iniludível!
O meu dia foi bom, pode a noite descer.
(A noite com os seus sortilégios.)
Encontrará lavrado o campo, a casa limpa,
A mesa posta,
Com cada coisa em seu lugar.
(Ob. Cit., p. 221)  

ANTOLOGIA DO NETTO

TEXTOS E CHARGE: JOÃO DE DEUS NETTO


DEUSDETE NUNES (O GARRINCHA)

Cearense de Aracati, piauiense por adoção. Tarado por futebol, onde foi atleta, dirigente, cronista e historiador. Colunista desde 1964, em O Dia,Teresina (PI),com Um Prego na Chuteira (coluna). Humorista com atuações em palco e TVs piauienses. Autor de 12 livros sobre futebol e costumes piauienses. Viúvo duas vezes, sendo “bi-uvo”. Ah, advogado e político. Vereador por dois mandatos.

Publicou:"Um Prego na Chuteira I", Um Prego na Chuteira II",Um Prego na Chuteira III, Teresina Cheia de Graça, Rádio Calçada, As Tiradas de Mão Santa, As Histórias do Professor, A Saideira (De bar em bar),O Piauhylário, Foi Assim que Napoleão perdeu a guerra e As caras de Teresina. Também autor cordelista, destacando-se "A cobra do Motel", "A morte da doméstica", Mutirão dos enganados e "A vida e morte de Zé Galinha. Comentarista esportivo de rádio. Apresentador de programa de tv: "Chão da Gente". –Perfil feito pelo próprio Garrincha.

sábado, 12 de março de 2011

FLAGRANTES & INSIGHTS


O SOL E A VIDA

Elmar Carvalho

Sem ver nem para que, de repente comecei a pensar sobre o que seria mais importante: se o Sol, do qual depende a vida, ou se a vida, em razão da qual, talvez, existiria o Sol. Ou o Sol e a vida, assim como tudo mais, fariam parte de um mesmo e único Todo, que é Deus, e teriam a mesma importância como partes integrantes e integradas de uma mesma e única Criação, em permanente marcha evolutiva, ainda que por vezes pareça involuir? Deixo que a resposta seja procurada pelos sábios e teólogos. Pela minha parte, acho que tudo faz parte de um plano divino e perfeito, que apenas o seu Autor conhece em profundidade e em detalhes.

VESTIBULAR, 16 ANOS, REDAÇÃO 10


JOSÉ MARIA VASCONCELOS

Quando li o texto da adolescente, 16 anos, que enfrentara vestibular na Universidade da Bahia, arrepiei-me. Porque o belo artístico emociona. Mas, para sentir essa rara efusão do espírito, é preciso penar bom bocado: entrar na obra artística, interpretá-la, degustá-la. Ninguém ama o que não conhece. Ninguém dá o que não. É necessário estudar, ralar. Conhecer padrões e estilos artísticos, a fim de entender o bem feito.
Arte não é só fazer, mas criar. Há muita porcaria por aí exaltada como arte, principalmente quando se confunde beleza física, dinheiro, bajulações e fajutas emoções com talento. Emoção só vale quando se comtempla o bem feito. Para o filósofo Platão, arte tem de traduzir algo divino. Já o filósofo Aristóteles exalta o bem feito, independente de divino ou satânico.
Na prova de redação do vestibular da Universidade da Bahia, exigiu-se um texto baseado na seguinte estrofe de soneto camoniano: “Amor é fogo que arde sem se ver, / é ferida que dói e não se sente, / é um descontentamento descontente, / dor que desatina sem doer.”
A estudante mandou brasa: Ah, Camões, se vivesses hoje em dia, / tomavas uns antipiréticos, / uns quantos analgésicos / e Prozac para a depressão. / Compravas um computador, / consultavas a Internet / e descobririas que essas dores que sentias, esses calores que te abrasavam, / essas mudanças de humor repentinas, / esses desatinos sem nexo, / não eram feridas de amor, / mas somente falta de sexo!”
A adolescente soube contextualizar um sentimento longínquo de cinco séculos atrás com o do contemporâneo, usando rimas e versos nos caprichos da moderna poesia, bem como recursos científicos de saúde. Abocanhou nota 10. Eu só daria 9, porque falhou no uso incorreto do tempo verbal em TOMAVAS, COMPRAVAS, CONSULTAVAS, em vez de TOMARIAS, COMPRARIAS e CONSULTARIAS. Se a universidade exigisse texto em prosa, certamente cairia a nota, porquando fora escrito em versos. A avaliação não pode sofrer emoções.

sexta-feira, 11 de março de 2011

DALILÍADA - épico moderno baseado na vida e na obra de Dalí

ELMAR CARVALHO


XXIV

A alucinação dançava
sobre o teclado de onde
uma música fluida se evolava
tangida por invisíveis
dedos de fantasmas.

quinta-feira, 10 de março de 2011

À SENSIBILIDADE DAS MULHERES


ALCIONE PESSOA LIMA

A cada fim de ano há celebrações no ambiente de trabalho para comemorar/confraternizar grupos de colegas, e/ou comer e beber um pouco, pois ninguém é de ferro. E uma coisa me chama à atenção: as mulheres valorizam cada detalhe na arrumação da mesa, dos talheres, no “menu” a ser servido e, muitas vezes, em algumas dinâmicas para quebrar o gelo e tornar realmente festivo o momento.
Observo, assim, que a delicadeza feminina é algo magistral, pois, para nós homens, com raras exceções, quando estamos à frente de tais eventos o fazemos de qualquer jeito. O que muitas vezes desejamos é que sempre sejam comemorados  com muita cerveja e churrasco, como se estivéssemos assistindo a uma boa partida de futebol.
Isso me faz lembrar Machado de Assis, em um trecho de seu “Memorial de Aires”, em que um personagem dizia ao outro ter certeza de que foi uma mulher, e não o desembargador que também estava na cena, quem arrumou as flores no cemitério. Afinal, “a disposição, o arranjo, a combinação, tudo era mulher”. Além do mais, ensina Machado, “há dessas cousas que mão de homem não faz: mão de homem é pesada ou trapalhona, e mais se é de desembargador”. E, para fulminar a questão, explica que se fosse um homem a arrumar, “chegava ali, pegava as flores e espalhava-as à toa.”
Tal característica feminina impõe distância, na comparação com os homens, posto que lhe é peculiar, e daí revelar-se como um ser único na terra. 
E por falar nos homens, veio-me à mente um momento em que uma colega de trabalho, ao tomar cafezinho, sujou seu vestido branco e, sentindo-se desconfortável com a situação, pois a mancha era ostensiva, falou ao chefe que precisaria ir em casa para se trocar. E ele, totalmente desatento à situação, achou que aquela mancha se tratava de uma mera estampa, razão por que não quis autorizar a saída da colega. 
Hoje mesmo, ao participar da despedida de outra colega/amiga que deixava uma função de confiança, mesmo sendo um momento simples, sem pompas, percebi que estava recheado de emoção, principalmente porque foi organizado por suas amigas mulheres. Apesar do discurso ter sido elaborado por um homem, uma dessas flores o leu e deu à referida peça um aroma que somente delas poderia exalar. Sem falar na própria homenageada, que mesmo forte não se conteve e deixou-nos ver um momento raro para todos: derramar algumas lágrimas. 
Assim, diante de tudo isso, talvez esteja a grande diferença entre um mero homem e um filósofo, pois este está sempre observando os seres e a própria vida, que é bela exatamente por ser vivida.

"As mulheres são as flores da vida, assim como as crianças são os frutos d'ela."
B. de Saint-Pierre

         PARABÉNS A TODAS AS MULHERES!

quarta-feira, 9 de março de 2011

DIÁRIO INCONTÍNUO





9 de março

AS CINZAS DO CARNAVAL

Elmar Carvalho

Este ano, por motivo de ordem pessoal, resolvi não viajar. Passei o período carnavalesco em casa, lendo, refletindo e descansando. Conquanto nunca tenha sido propriamente um folião, acho que foi (o deste ano) o melhor carnaval de minha vida. De modo que estou, nesta quarta-feira de Cinzas, repousado, saudável e sem arrependimento financeiro. Sei que muitos, vendo as cinzas frias do carnaval que passou, estarão arrependidos pelos excessos de álcool e de gastos, imersos em letárgica e doentia ressaca, em que o arrependimento tardio lhes devasta o ânimo.

Como disse, nunca fui propriamente um amante das folias momescas. Não tinha jogo de pernas nem molejo de cintura, e não gostava de sair pulando e saracoteando pelo salão. Por sinal, nunca gostei das alegrias forçadas e artificiais, motivadas por aglomerações festivas, com essa música gritada, gutural e ensurdecedora de hoje, em que o cantor parece estar a se espremer, com letras degradantes, de duplos sentidos, de trocadilhos grosseiros ou mesmo de escancarado mau-gosto, de forte apelo pornô, quase sempre. Não me enternecem, não me agradam o senso estético e não me fazem melhor, e não lhes vislumbro, ainda que longinquamente, qualquer toque de sublimidade, que deve ter a boa arte. Quase sempre são um apelo ao hedonismo, ao sexo pelo sexo, em que a maior criatividade parece ser chamar a mulher de “cachorra”, quando o cantor lhe pede a “patinha”.

Contudo, em minha juventude, fui a alguns bailes de carnaval, mais para estar com os amigos, degustar umas cervejas e aventurar a conquista de alguma namorada. Gostava das marchinhas carnavalescas, que tinham verdadeira música e conteúdo. Por vezes eram letras românticas, que falavam de pierrôs apaixonados, colombinas chorosas, corações dilacerados, jardineira a prantear flores mortas e as tristes cinzas da quarta-feira pós carnaval, em que o arrependimento tomava de conta do ressacado folião; ou quando, cessada a euforia artificial do álcool, da dança, da música e do ócio irresponsável, a depressão batia, ante o retorno à realidade do cotidiano mais trivial.

Talvez por causa dessas reflexões, o imenso poeta Manuel Bandeira, em seu retraimento de tímido e tísico, dizia, em seus versos, que uns tomavam cocaína, e ele, que já tomara tristeza, agora tomava alegria. Em outro poema, esse grande bardo alegava que eram tristes essas músicas de carnaval. De fato, como já disse, algumas letras eram repassadas de tristeza e solidão. A solidão de alguém em plena multidão, a tristeza pungente de algum folião a “tomar alegria” em meio ao frenesi da turbulenta folia momesca.

Acho que a alegria deve ser construída dentro de nós, no dia a dia, com a ajuda das lições espirituais e da arte, do trabalho e das boas ações, da verdadeira música e da boa literatura, que nos eleva espiritualmente e nos fortalece e aprimora o senso estético. Todavia, para não dizer que não falei de “flores”, mas que somente destilei “fel” no “mel” dos outros, devo dizer que ainda gosto de uma boa marchinha carnavalesca, que admiro, pela televisão, o carnaval de Pernambuco, com a dança alegre e moleca do frevo, com as suas sombrinhas multicoloridas; a indumentária, as cores, as fitas, a música e a dança popular dos maracatus.



E, por fim, a música vibrante dos metais em fervorosos frevos e marchinhas e a alegria descontraída e espontânea dos blocos de rua, em que todos se congraçam sem a necessidade da aquisição de caríssimos abadás e luxuosas fantasias. A alegria e a fantasia devem estar em nós mesmos, em nosso imaginário e em nosso espírito. Evoé, Baco! E boas cinzas, nesta quarta-feira de Cinzas.

terça-feira, 8 de março de 2011

DIÁRIO INCONTÍNUO




8 de março

MATÉRIA VERSUS ESPÍRITO

Elmar Carvalho

Fui ao Tribunal de Justiça, na sexta-feira, tratar de vários assuntos, um dos quais de meu interesse funcional. Ao entrar no gabinete da presidência, além do presidente Edvaldo Moura, encontrei o des. João Menezes da Silva, que também presidiu a corte de Justiça do Piauí. Trata-se de cidadão afável, educado, e que sempre me foi muito simpático, desde o meu início na magistratura. Disse-lhe que estava requerendo meu abono previdênciário, em virtude de minha permanência na atividade. Há vários meses completei tempo de serviço e idade para aposentar-me, uma vez que comecei a trabalhar aos dezenove anos, quando ingressei na ECT e posteriormente na extinta SUNAB, sem sofrer a interrupção de um dia sequer, em minha prestação laboral.

O des. João Menezes, a sorrir com gosto, ao saber de minha pretensão, e sabendo que também me dedico às letras e à cultura, indagou-me por que eu desejava a gratificação, uma vez que eu, por ser poeta, deveria viver de brisa e de coisas etéreas e espirituais, e não de bens financeiros e econômicos. Respondi-lhe que o poeta poderia dispensar as coisas materiais, mas que a sua família precisava de alimentos e outros bens concretos, inclusive dinheiro. Por fim, expliquei ao bom magistrado João Menezes, que era o juiz que sustentava o poeta, encarnado na mesma pessoa física, que sou eu mesmo.

Dizem que o intelectual Eduardo Prado, ao contemplar verdejante campo, teria perguntado a sua mulher Alice, em criativo jogo de palavras: “De que ali se vive?” Conta a lenda, que ela, imediatamente, teria respondido com outro trocadilho em torno do nome do marido: “É do ar do prado”. Não podendo eu, ao contrário de Alice, mesmo cultivando as coisas espirituais, viver apenas de brisa, espero seja o meu abono deferido.

segunda-feira, 7 de março de 2011

ARTE-FATOS ONÍRICOS E OUTROS (*)


TRAGÉDIA SHAKESPEARIANA EM SETE CIDADES

Elmar Carvalho

I

Algumas décadas atrás, um caçador, ao se abrigar de forte chuva, entrou numa furna da Serra Negra, em Sete Cidades. Para se aquecer e afugentar possível onça, acendeu uma fogueira. Pode, então, descobrir um objeto algo semelhante a um pote, só que hermeticamente fechado. Ao lhe bater com uma pequena pedra, verificou, pelo som, que era oco. Chegou a pensar que na urna de argila estivesse contido algum tesouro, mas para sua decepção, quando a quebrou com uma pedra, constatou que dentro dela só havia várias placas de barro cozido, semelhantes a mosaicos, porém retangulares e de maior dimensão. Logo viu que essas peças continham caracteres, semelhantes a hieróglifos, como os que existem em outras grutas e paredões de Sete Cidades.

Deliberou contar o caso a um ermitão, de nome Licurgo Meneses, tido como sábio, por alguns, e por louco, por outras pessoas, que estudava essas escritas antigas fazia vários anos. O ermitão ficou feliz com a notícia, com a qual sempre sonhara, e pediu ao caçador o levasse até a furna. Depois, no lombo de burros, ambos transportaram essas peças de cerâmica até a casa onde o solitário Licurgo morava, perto da Pedra do Castelo. Este já tinha vários cadernos com as cópias dos caracteres que encontrara em diferentes locais de Sete Cidades. O desejo de decifrar o teor das placas de argila foi muito forte, e o ermitão dedicou todas as horas do dia a esse mister, comparando as letras, cotejando os caracteres com as figuras, até conseguir fazer a leitura do que as peças diziam.

Esse Champollion de Sete Cidades traduziu o que a urna cerâmica continha, assim como também outros escritos que ele encontrara nas pedras das grutas e das encostas dos morros e dos paredões rochosos. Pelo menos foi o que ele afirmou, sem nunca ter sofrido contestação. Fiz uma cópia da tradução dos caracteres das placas de argila, e passo a narrar os fatos com minhas próprias palavras, e de forma resumida, já que não quero me fatigar e nem aborrecer o meu leitor. Acrescento que pretendo divulgar as outras anotações de Licurgo, falecido aos 77 anos de idade, já faz alguns anos. Para muitos ele foi uma espécie de feiticeiro, rezador ou simplesmente um místico solitário e maluco. Como seu corpo nunca foi encontrado, houve inevitável mistificação, com algumas pessoas acreditando ter sido ele arrebatado numa carruagem de fogo, e que retornará quando as cidades de pedras forem desencantadas. Entretanto, os mais realistas simplesmente acham que seu corpo foi devorado por animais, embora seu esqueleto nunca tenha sido visto.

II

O narrador das tábuas cerâmicas fala da história e dos costumes de sua tribo, que habitava às margens do rio Piracuruca. Essa etnia tinha uma casta de sacerdotes, que viviam isolados nas formações rochosas de Sete Cidades. Esses místicos viviam a adorar a lua e o sol, considerados deuses. A ordem era composta de homens, que oravam ao sol e de mulheres que reverenciavam a lua. Tinham eles um calendário, baseado na estação das chuvas, que correspondia aproximadamente a um ano solar. Os sacerdotes cultivavam o celibato, e qualquer violação a essa regra era punida com a morte. A cada período de aproximadamente quatro anos um homem e uma mulher, virgens e adolescentes, passavam a integrar o grupo. Eram instruídos na escrita e nos mistérios religiosos, bem como na arte de curar, através de ervas e de rezas. Formavam a aristocracia guardiã da história e da tradição da tribo, e do saber da escrita.

O casal de adolescentes teria de passar por um período de provação, que consistia em passar, inicialmente, um período chuvoso em região isolada da floresta, na região da Serra Negra, a meditar e a rezar, sem que o homem e a mulher pudessem se tocar. Caso o pretendente eleito fosse aprovado, seria admitido na confraria religiosa, em que teria restrições, mas gozaria de privilégios, entre os quais alimentação e moradia gratuitas, sem necessidade de caçar, guerrear, colher frutos silvestres, ou de praticar a rústica agricultura tribal, além de gozar de prestígio social e político. Durante o período probatório, os segredos religiosos não foram revelados a Anajá e Ulana, e nem lhes foi dito que sofreriam  observação por parte de olheiros, que se revezariam na rigorosa vigilância.

O casal teria de dormir obrigatoriamente em determinada furna, sob o pretexto de que era mais segura e mais confortável. Desde antes da adolescência, Anajá e Ulana já se olhavam com muita ternura, e chegaram a se tocar furtivamente, mas não lhes foi permitido o casamento, vez que foram escolhidos, pelos sacerdotes, por serem física e mentalmente perfeitos, para ingressar na ordem religiosa. Foram advertidos de que deviam se manter virgens, e lhes foi contado, como advertência, que, em mais de uma ocasião, casais de adolescentes já teriam sido imolados, ao serem flagrados a se tocar, ou quando a jovem dava sinais de estar grávida.

III



O sacrifício tinha requintes de crueldade. O homem e a mulher eram amarrados em dois postes, completamente desnudos, quase a se tocar, de modo que um pudesse contemplar o outro. Ficavam expostos ao sol e às intempéries e mosquitos noturnos, sofrendo sede e fome. Portanto, um via a insolação cruel e o inexorável definhamento do outro. Assim, o último a morrer assistia à decomposição do ser amado, atrelado ao cruel pelourinho, e devorado pelas aves de rapina. Ó, como a morte se tornava tão desejável, tão implorada em preces ardentes...

Anajá e Ulana, numa noite tempestuosa, em que o céu pareceu derramar toda a água que tinha, se tocaram e se amaram com sofreguidão, várias vezes, com todo o furor e êxtase da libido adolescente, numa quase insaciedade, como se quisessem fazer valer a pena o risco de vida, que corriam, caso a violação da castidade fosse descoberta. Claro, não lhes foi dito, mas aquela furna tinha um furo, que permitia ao sacerdote espião olhar e ouvir tudo o que se passava no seu interior. Quando escurecia, o vigia retirava cuidadosamente uma pedra que fechava o buraco, e ficava a espionar o casal a noite toda, à procura de sussurros e gemidos amorosos, e mesmo a contemplar o casal, caso a fogueira estivesse acesa, como, aliás, era recomendado, sob o argumento de que servia para o aquecimento e para afugentar animais ferozes. Já houvera caso em que o homem fora retirado brutalmente de cima da mulher, pelos espiões, antes do término do coito.

Morcegos esvoaçavam na caverna, esquivando-se das labaredas. De repente, o canto esganiçado de alguma rasga-mortalha, por entre o ribombar dos trovões, ecoava na gruta. Ulana estremecia, como se tivesse um calafrio de mau presságio. Mas naquela noite fria de tempestade tão violenta, de chuva tão forte, de relâmpagos tão refulgentes e de trovões tão ensurdecedores, o sacerdote claudicou na sua missão, mesmo porque o córrego que se formava poderia arrastá-lo para o despenhadeiro; em lugar de cumprir o seu dever, justificadamente procurou abrigo numa toca que havia a uns trezentos metros, onde estavam seus companheiros, de modo que o casal escapou do flagrante fatal. Todavia, no dia seguinte veio o terror de que haviam pecado contra a castidade, que lhes fora inculcado na consciência, desde que lhes fora dito que seriam sacerdotes. A jovem ficou com um brutal medo de engravidar, e jurou à lua que, se tal não acontecesse, cumpriria o seu mister religioso com a mais devotada dedicação.

IV



Contudo, vieram os sinais da gravidez. Ulana, apreensiva, notou que a sua regra menstrual falhou. Constatou a sutil alteração nos seios e no ventre. Sabedora da morte cruel a que seriam submetidos ela e o amante, tomou a decisão heroica de se matar, sem nada dizer ao seu amado. Fingiria um acidente, e se lançaria do alto do abismo. Premeditou detalhadamente como executaria o seu plano, de modo que não despertasse nenhuma suspeita, nem dos sacerdotes e sacerdotisas, nem de Anajá. Se os religiosos desconfiassem da gravidez, determinariam a morte do amante, e se este soubesse da sua simulação, poderia querer matar-se. Quando o rapaz adormeceu, a jovem pegou um utensílio de palha, como se fosse colher frutos, e se dirigiu a um penhasco. Lá, derrubou uma pedra, para deixar as marcas, que pudessem simular um tropeço, e se lançou no abismo, de ponta cabeça, de modo que não houvesse a menor possibilidade de salvação.

Quando Anajá viu o cadáver, quis morrer também. Imaginou o que acontecera; fora suicídio, por causa de possível gravidez. Examinou atentamente os belos seios e o ventre da amada, e não teve dúvida de que a moça estava no início da gestação daquele que seria seu filho. Aprendera, com seu pai, os segredos do envenenamento das pontas das flechas. Colheu as ervas mortais. Os espiões viram o suicídio de ambos. Entenderam o que se passara entre os dois jovens, e tiveram certeza, ao contemplar o cadáver de Ulana, de que ela estava grávida. Comunicaram o triste acontecimento à casta sacerdotal e à tribo. Os jovens amantes foram enterrados entre fortes clamores e pungentes soluços.

V

O mais idoso dos sacerdotes foi à gruta sacrificial, tomou a bebida sagrada, e retornou com o olhar de louco. Em altos brados, convocou os demais sacerdotes, e lhes contou a visão que tivera. Disse-lhes que o deus sol lhe aparecera em pessoa, como se fosse uma tocha humana, e lhe dissera, em voz tonitruante, cheio de autoridade e resplandecência, que a partir dessa tragédia ficava proibida a castidade obrigatória. Se alguém quisesse guardar a virgindade, que o fizesse por devoção, por livre e espontânea vontade, mas sem que a isso estivesse obrigado. O ancião jurou estar falando a verdade, de modo que a confraria foi obrigada a acatar a decisão divina. Contudo, não mais recobrou a sanidade mental.

Algumas pessoas murmuraram que a dose da bebida sagrada fora demasiadamente forte, e lhe ensandecera. Outros, disseram que ninguém via o deus sol em sua forma humana impunemente. O privilégio se transformava em maldição, com o visionário ficando louco, a proferir palavras desconexas e por vezes proféticas.

(*) Desde minha juventude desejei escrever um romance ambientado em Sete Cidades, desenvolvendo o assunto desse conto. Todavia, não tendo mais paciência e força de vontade para a empreitada, resolvi elaborar uma narrativa curta, que talvez possa dar origem a roteiro de filme.

domingo, 6 de março de 2011

FUGA AO PASSADO

ELMAR CARVALHO



Uma da tarde. O apito da Moraes
estridula no ar. Emocionado
sinto como se o tempo houvesse parado
e eu me encontrasse ainda
preso às âncoras do passado.
O apito me deixa comovido
e eu não sou mais eu
mas alguém que já fui e que
no esquecimento se deixa escondido.
E aquele tempo perdido
inverte a rota da ampulheta
e retorna intacto como se jamais
deixasse de ter existido.
E o tempo se embaralha
sem passado, sem futuro e sem presente
e as recordações comovem tanto
que a própria alma de tanto
sentir não se sente
e evola para um tempo
sepulto pela areia da ampulheta.

sábado, 5 de março de 2011

FLAGRANTES & INSIGHTS


BRAVATA DE CORONEL

Elmar Carvalho

Ao ficar viúvo, o velho coronel resolveu casar-se novamente, aos oitenta e pouco anos de idade. Sabedor de que para cavalo velho o remédio é capim novo, casou-se com uma mulher meio século mais moça. Pontualmente, a cada ano, nasciam os filhos, supostamente do coronel. Este, da varanda da casa grande, de onde jogava conversa fora e ditava suas ordens aos agregados, quando falava do mais novo rebento, caso notasse algum ar de dúvida, acrescentava, com ênfase e duvidosa convicção: “Filho meu, e não do vaqueiro.” Se alguém duvidava, nunca lhe confessou. Aliás, quem mais parecia duvidar era o próprio fazendeiro.

sexta-feira, 4 de março de 2011

A ausência de Benedito Nunes (1929-2011)


Benedito Nunes

CUNHA E SILVA FILHO

A crítica literária brasileira, sobretudo a praticada entre nós pelo chamado “alto ensaísmo”, está de luto com o falecimento de Benedito Nunes, professor de filosofia e de literatura da Universidade Federal do Pará. Formado em filosofia em Paris. É considerado um dos mais eminentes críticos literários que o país já conheceu, intelectual respeitado até no exterior.
Meu contato com ele foi apenas através de seus livros e ensaios , sobretudo literários. Porém, a primeira vez que dele ouvi falar foi logo durante o meu primeiro ano de curso de Letras nos meados da década de sessenta. Naquela época se falava muito e bem de uma obra dele de ensaios, sob o título O dorso do tigre, largamente lida e recomendada por professores e colegas universitários. Era, portanto, aquela obra importante que deveria constar da bibliografia nos cursos de Letras.
Entretanto, dele me aproximei ainda, sempre, é claro, através de sua escrita crítico-ensaística, durante a preparação da minha tese de doutorado, quando um aspecto nela abordado dizia respeito à categoria do tempo, fundamental à estrutura de qualquer narrativa ficcional. Para a discussão desse aspecto, uma das obras por mim então utilizadas e que lançou muita luz sobre aquela categoria foi O tempo na narrativa (Coleção Fundamentos Editora Ática), de Benedito Nunes.
Esta obra, pequena e percuciente, discute, com grande força analítica servida por um vasto espectro teórico e de conhecimento bibliográfico atualizado sobre o assunto, a intrincada questão do tempo nos seus vários ângulos e manifestações, em particular no campo da narrativa. Seu conhecimento profundo de literatura universal e de literatura brasileira, aliado às suas especulações de natureza filosófico-linguística, fez dele um crítico para quem o fenômeno literário sempre estaria recebendo uma sólida contribuição de formas de abordagens oriundas do saber filosófico, principalmente da fenomenologia.
Daí ter sido de extremo valor seus ensaios sobre Clarice Lispector, João Cabral de Melo Neto, Mário Faustino, Guimarães Rosa e tantos outros estudos sobre temas filosóficos.Me recordo, agora, de um comentário que Nunes fez sobre a sua formação intelectual. Sabe-se que teve formação linguísitca primordialmente em francês.Um dia, porém, se queixou – lamentando -, de que não dominava bem o alemão – idioma básico pros estudos filosóficos que, no país, tem história desde Tobias Barreto (1839-1889). Como era estudioso de filosofia, essa lacuna não podia suportar. Mesmo assim, me parece que se decidiu, ainda que um pouco mais tarde na vida, a melhorar seu conhecimento naquela língua. Acredito que chegou a dominá-la, o suficiente para ler no original autores germânicos, porquanto no livro Heidegger & ser e tempo ( Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editora, 2002) já demonstrava sinais evidentes de domínio do alemão.
Benedito Nunes pertence a um seleto grupo de intelectuais do Pará. Fora colega de Mário Faustino, quando este saíra de Teresina pra Belém. Também teve como amigo e admirador o grande poeta paraense Jurandyr Bezerra, que reside há muitos anos no Rio de Janeiro e de quem tenho a honra de ser amigo.
A propósito da morte recente de Benedito Nunes, veja o leitor um pequeno trecho de Heidegger & ser e tempo (op.cit.) no qual, estudando esta obra de Heidegger na seção de título “Morte”(p. 22-24), assim conclui:
“(...) Concorrentes que se traspassam, o ser-para a morte e o poder-ser livre implicam, cada qual, a projeção Dasein para fora de si menor com o que a existência toma a configuração de um êxtase, de um movimento extático que traça o perfil ontológico da temporalidade.” (grifos do autor citado).
Uma palavra final: é preciso reler Benedito Nunes ou mesmo conhecer-lhe a obra superior que nos legou, tanto na crítica literária, no ensaio, quanto nos estudos filosóficos. Sentiremos sua ausência e o seu saber notável.


quinta-feira, 3 de março de 2011

DALILÍADA - épico moderno baseado na vida e na obra de Dalí

Elmar Carvalho


XXIII

Na paisagem desolada
duas sombras humanas
na sombra das ruínas
se abraçavam e uma
sombra única teciam.

quarta-feira, 2 de março de 2011

DIÁRIO INCONTÍNUO


2 de março

OCASOS & ACASOS

Elmar Carvalho

Hoje a televisão noticiou que uma pedra, de aproximadamente dois quilos, caiu de um viaduto sobre o parabrisa de um carro que passava, e terminou provocando a morte do passageiro. Se a pedra foi empurrada por alguém, esse alguém deve ser alguma espécie de louco, para fazer uma maldade tão gratuita, já que não poderia saber quem iria ser atingido com o impacto. Seria uma espécie de franco atirador de pedra ou um jogador de roleta russa, mas a apostar na sorte alheia, e não na sua própria, a se comprazer em sua iniquidade gratuita e ociosa, que nenhum bem lhe renderia. E se ninguém a empurrou, trata-se apenas de uma fortuita fatalidade. Acaso o carro viesse alguns segundos mais devagar ou alguns segundos em mais alta velocidade, o desfecho, certamente, não teria sido trágico.

Esse episódio me fez lembrar o caso do senhor Martinho, um amigo de meu pai. Muitos anos atrás ele foi bafejado pela sorte, quando foi contemplado com um bom prêmio lotérico. Aproveitou, segundo disseram, para empregar o dinheiro na compra de várias caixas de sabão, para revender esse produto. Acabou não fazendo um bom negócio, e o prêmio de nada lhe serviu, com o dinheiro se lhe esvaindo entre os dedos como num passe de mágica. Em 1975 fomos morar em Parnaíba, e meu pai ficou vários anos sem ver esse seu amigo. No final da década de 80, Martinho conseguiu localizar meu pai, e foi visitá-lo, inesperadamente, em sua casa, onde os dois conversaram longamente sobre assuntos idos e vividos.

Poucos dias depois, meu pai soube da tragédia. O carro desse representante comercial foi colhido pelo trem, na passagem de nível entre Teresina e Altos ou entre esta cidade e Campo Maior. A locomotiva passa, se não estou enganado, apenas uma vez por dia, indo para o Ceará, ou voltando desse estado. Se Martinho tivesse parado em algum lugar, seja para tomar um cafezinho, seja para ingerir um refrigerante, o desastre que lhe ceifou a vida não teria acontecido. Ou teria? Não teria sido alguma eventual demora, por qualquer motivo, que fez o carro do senhor Martinho cruzar a BR no exato momento em que o comboio estava a passar? São demais os perigos e os mistérios da vida. Por acaso, quando ele procurou meu pai, após tantos anos de ausência, não estaria com alguma espécie de premonição, a pressentir o ocaso de sua vida? Não sei, e ninguém jamais saberá. Ponto de interrogação e ponto final.

terça-feira, 1 de março de 2011

DIÁRIO INCONTÍNUO


1º de março

 AS MARCAS DO TEMPO

Elmar Carvalho

Nesta segunda-feira, quando eu vinha de manhã cedo para o serviço, o meu carro apresentou problemas na direção hidráulica, no ar-condicionado e no sistema de freios, de modo que resolvi estacioná-lo na cidade mais próxima, enquanto aguardava o reboque. Segundo o mecânico me disse ao telefone, talvez tenha quebrado uma das correias do motor. Parei no acostamento da BR, e fiquei aguardando no comércio de um conhecido meu. Ficamos a conversar sobre assuntos diversos, e sobre o tempo de minha adolescência, em que estive nessa cidade a passeio. Durante a prática, entrou no estabelecimento um homem, aproximadamente de minha idade. Tinha uma cicatriz bem acentuada na testa. Em outro lugar eu não o teria reconhecido, mas ali imaginei fosse determinada pessoa.

Consultei meu anfitrião a esse respeito, tendo ele me confirmado tratar-se da pessoa que eu imaginava ser. Mais ou menos em 1972, quando estive a passeio nessa cidade, esse homem era magro, cabeludo e de boa pele, e era o centro das atenções, por ser o filho do alcaide. Estava quase sempre acompanhado por um séquito de apaniguados. Saturno, o tempo, que nada respeita, em sua insolência desabrida, devastou os seus cabelos, desenhou-lhe os sulcos das rugas e lhe deu a corpulência de certa adiposidade. Não deu mostras de me haver reconhecido, mesmo porque não tive nenhuma aproximação com ele, em nossa juventude, e só o vi à distância. E se me reconheceu, não sei o que deve ter pensado sobre o que o tempo também armou para cima de mim.

Essa circunstância me fez lembrar uma outra, de natureza algo tragicômica. Noutra cidade, onde servi, um senhor, casado com uma amiga minha, quis visitar um antigo amigo seu, com o qual trabalhara, no serviço de construção da ferrovia central do Piauí, em sua juventude, várias décadas atrás. Sua mulher, não sei se por causa da distância ou se por algum presságio vindo de sua intuição, o aconselhou a não fazer essa visita. Mas ele, acometido de forte saudosismo e em homenagem à amizade dos velhos tempos, insistiu em fazê-la.

Ao chegar à pequena cidade, depois de ter visto o que restou da velha ferrovia e da minúscula estação ferroviária, logo localizou o velho amigo. Marchou para cumprimentá-lo com muito entusiasmo, sorridente, com os braços já abertos para o fraternal amplexo, e com a saudação enfática de entusiasmo e alegria já a lhe escorrer dos lábios. Entretanto, o outro, friamente, apenas disse: “Mas Fulano, tu estás acabado”. O meu amigo, diante da ducha de água gelada, murchou todo, encolheu-se todo como uma bexiga esvaziada, e nada conseguiu articular em resposta. Nem ao menos uma simples indagação comparativa de revide a quem parece não se olhar no espelho: E tu, e tu?.. A minha amiga, em coro com os festivos bem-te-vis, apenas lhe disse, como futura advertência: “Bem que eu te disse, bem que eu te disse...”

segunda-feira, 28 de fevereiro de 2011

ARTE-FATOS ONÍRICOS E OUTROS


TRAIÇÃO E MORTE

Elmar Carvalho

Marcos vinha de um casamento fracassado, do qual tivera três filhos. Chegara a suspeitar da mulher, por causa de alguns atrasos no retorno do serviço, de algumas compras demoradas, e de uma vez em que não a encontrara no seu local de trabalho. A mulher tudo explicou, de forma segura, convincente, sustentando-lhe o olhar, sem gagueiras, sem titubeios, sem incoerências e sem contradições. Mesmo assim, desconfiado como era, contratou detetive particular para lhe seguir os passos. Após quatro meses, recebeu circunstanciado relatório em que a fidelidade da mulher lhe foi assegurada. Apesar disso, os desgastes naturais da vida em comum, as incompreensões recíprocas, as rotinas no relacionamento, o minguar da paixão inicial, tudo terminou contribuindo para o divórcio.

Resolveu passar a ter relacionamento esporádicos, e até mesmo recorreu a moças de programas. Contudo, encontrou uma mulher com quem muito se afinava, e que também vinha de um casamento desfeito, felizmente sem filho. No início, se encontravam em lugares públicos e em motéis. Depois, a mulher já pernoitava em seu apartamento, e vice-versa. Com o passar do tempo, passavam os finais de semana na companhia um do outro. Por fim, resolveram morar juntos, e dois anos depois decidiram casar, no religioso e no civil. Marcos disse à mulher não admitir traição, e lhe contou o motivo de sua separação anterior. Creusa, sem ênfase, para não demonstrar ter ficado ofendida, mas com firmeza, lhe respondeu que ficasse despreocupado, quanto a isso, pois o amava, e, além do mais, sua índole não lhe permitiria cometer tal indignidade.

Após uns três meses do casamento, Creusa disse ao marido estar grávida. Estranhou o fato de Marcos não ter demonstrado alegria. Na verdade, notou-lhe certa frieza, e até mesmo contrariedade. Como o homem tenha dito que poderia ela estar enganada, achou que a reação de apatia, senão mesmo de tristeza, poderia vir dessa dúvida. Por isso, disse-lhe que oportunamente repetiria o teste. Mas não precisou fazê-lo, porque em pouco tempo a sua barriga tirou qualquer dúvida por ventura existente. Para sua perplexidade, a tristeza do marido apenas aumentava. Aparentemente não mais a desejava. Aliás, parecia que passara a lhe ter repulsa, e já não mais a procurava, e até se afastava, quando a mulher o acariciava.

Certa noite, quando Creusa retornou da rua, onde fora comprar o enxoval do bebê, encontrou o marido com o aspecto transtornado e o olhar desvairado. Na mesa, ele havia colocado uns papéis, e algo encoberto por um guardanapo. Marcos, sem rodeios e sem meias palavras, falou: “Você é uma vagabunda e cínica. Quanto cinismo e quanto teatro, sua cretina... Nunca eu lhe disse, e isso foi de propósito, mas eu fiz vasectomia, e portanto esse teu filho não é meu filho, sua safada”. A mulher jurou que devia haver um engano, porquanto nunca o traíra, porém o marido foi implacável na acusação, e quanto mais ela lhe jurava fidelidade, mas ódio ele parecia sentir, enquanto exibia o atestado e o laudo de sua vasectomia. Depois, como louco ou possesso, retirou o revólver de debaixo do pano, e matou a mulher com três tiros. Em seguida, se dirigiu à delegacia do bairro, onde tudo confessou, a exibir os documentos da cirurgia, que o tornara impotente para a concepção.

O delegado era experiente e muito criterioso, e não obstante as provas da vasectomia e a confissão firme do autor do crime, mandou fosse feito exame de DNA na falecida, no feto e no homicida. O resultado apontou, com possibilidade quase zero de erro, ser Marcos o pai do menino que estava sendo gerado no ventre de Creusa. Mandou, então, examinar o que ocorrera com a suposta vasectomia. Descobriu-se que o canal deferente se havia restaurado, em caso raro, mas não impossível de acontecer. Marcos ficou como louco, taciturno, calado, com o remorso a lhe corroer a alma. Poucos dias após, foi encontrado morto, pendente de um lençol branco, caprichosamente enrolado como uma corda. O olhar esbugalhado fitava a monotonia da parede branca. Aliás, parecia fitar exatamente um ponto muito pequeno, quase invisível, no qual se lia, em letras de sangue, a palavra perdão.

domingo, 27 de fevereiro de 2011

ANTOLOGIA DO NETTO

JOÃO DE DEUS NETTO


CUNHA E SILVA FILHO

Doutor em Literatura Brasileira pela UFRJ. Titular de língua inglesa aposentado do Colégio Militar. Lecionou literatura brasileira, língua inglesa no curso de Letras, inglês instrumental nos cursos de Comunicação Social da Universidade Castelo Branco.Ensaísta, crítico literário, cronista, tradutor, colaborador, desde 1963, em jornais e revistas, sobretudo do estado do Piauí. Autor de Da Costa e Silva: uma leitura da saudade (Editora da UFPI/Academia Piauiense de Letras, 1996; Da Costa e Silva: do cânone ao Modernismo. In; SANTOS, Francisco Venceslau dos. Geografias literárias - Confrontos: o local e o nacional. Rio de Janeiro: Editora Caetés, 2003, p. 113-124; Breve introdução ao curso de Letras: uma orientação. Rio de Janeiro: Editora Quártica, 2009. Tem mais três livros, As ideias no tempo, Aquela noite de Shakespeare e A sollidão na terra.Colunnista de Letra Viva, site Entretextos, de Dílson Lages. Colabora para o Diário do Povo, Teresina, Piaui. Seus interesses em literatura brasileira se concentram na relação entre literatura, pobreza e marginalidade.Da União Brasileira de Escritores(Piauí).

sábado, 26 de fevereiro de 2011

RAZÕES DE NÃO SER FICCIONISTA


CUNHA E SILVA FILHO

Uma vez um dos meus filhos, me confessara: “Papai, sou de uma área humanístico-científica, mas, como admiro quem escreve ficção, seja romance, seja, novela, seja conto! E ainda mais, viver apenas do suor da pena, da força da escrita, circunstância feliz que dá a alguém um sensação de liberdade quase absoluta.” Creio que inventar vidas e conflitos seja algo maravilhoso. Extrair do nosso próprio talento situações, tempos, eras, personagens, paisagens, cores, sons, perfumes, cheiros, espaços, ambiências, linguagens, seja em que estilo narrativo for, mas desde que convincente e criativo na harmonia do todo e na capacidade de verossimilhança, de convencimento, de espontaneidade em lidar com fatos e a realidade, sem , contudo, duplicar esta servilmente tentando artificialmente compor histórias forçadas, sem sopro algum de vida e sem personagens de “carne e osso”, como diria o velho e esquecido crítico Agripino Grieco (1888-1973)
Dar vida plena a tudo isso, fazendo com que o leitor, ao abrir as primeiras páginas de uma história, se veja em outra plano de uma existência parecidíssima com o chamado mundo empírico, porém urdido com um convencimento tão notável que, ao fim, faça aquele leitor sentir ser a vida um a realidade bem menos completa e interessante do que a imaginária e, além disso, com aquele poder mágico e encantatório de ser capaz de penetrar no pensamento do personagem ou do narrador. Isso não é grandioso no domínio estético?
“Por que, meu pai, o senhor não se tornou um escritor, quero dizer, um ficcionista?” A estas indagações filiais, responderia que o melhor seria ler o que José de Alencar (1829-1877) e tantos outros escritores têm a afirmar sobre esse questão tão complexa e fascinante ao mesmo tempo.
Até poderia ensaiar alguma ficção com o esforço do intelecto, com a experiência da leitura de grandes autores brasileiros e estrangeiros e com o conhecimento teórico da estrutura do texto ficcional. Entretanto, existe algo mais que inibe a possibilidade de alguém se tornar ficcionista. Esse “algo mais” chamarei simplesmente de talento, um termo antigo, mas ainda bem indicado para essa ideia que tenho de alguém vocacionado para a criação literária.
Se não há talento, espírito inclinado ao ato de “fingere” “modelar, imaginar, fingir, compor” (MOISÉS, Massaud. Dicionário de termos literário. São Paulo : Cultrix, 1992, p. 229), ou a presença da “poesis” (para o poeta Wallace Stevens [1879-1955], “a poesia é a suprema ficção”), ou o uso adequado do mimetismo aristotélico, do “fabbro”, ou ainda a natureza contida na definição magistral de Fernando Pessoa(1888-1935) sobre a figura do poeta, num poema tão conhecido e citado, que é “Autopsicografia”, todo esforço de querer inventar mundos e vidas, intrigas e os chamados “mundos possíveis”, os mundos de papel barthesianos, fazendo a movimentação necessária do desenrolar da narrativa, da representação dramática, do diálogo ou do monólogo exterior ou interior, do trabalho de engenharia no uso do tempo e do espaço, do domínio indispensável da descrição, da narração, tudo isso perderia seu sentido mais elevado e pleno na criação artística. Tudo isso seria fracasso e não construção ficcional.
Se o escritor não reúne atributos inatos no uso da linguagem literária, na habilidade do desenho dos personagens, na construção da trama ou intriga e na expressão de sua cosmovisão, na descrição da natureza, dos objetos concretos, na visualização do ambiente físico ou psicológico dos personagens, no conhecimento perfeito da paisagem, do interior das habitações, do urbano e do campo, na descrição das ações físicas, nas expressões adequadas à situação narrativa, ou seja, se não for equipado com um vasto e variado domínio de vocabulário e o que for de artifício de técnica narrativa, seja por linhas de construção romanesca tradicionais, seja modernas ou pós-modernas, de nada adiantará ao “would be writer” desejar chegar à praia de uma criação literária de qualidade. Neste caso específico, não há oficina de ficção que dê resultados eficazes. Lembre-se o leitor de que aqui se está discutindo o campo da criatividade, da arquitetura do belo, do sensível, do palpável, do pictórico, do lúdico e de outras formas de construir experiências humanas e objetos naturais e culturais paralelos ao mundo físico-existencial, uma forma de idealizar, via emoção e beleza, o mundo imaginário através do chamado “correlativo objetivo” formulado por T.S. Elliot (1888-1965) A vocação é condição sine qua non do surgimento de um escritor verdadeiro.
No Brasil, e certamente em outras países, sempre tivemos exemplos de homens cultos, versados numa dada área, até mesmo associada às letras, que escreveram ficção sem que tivessem nenhuma repercussão, só se restringindo a um pequeno círculo de amigos que a leram e sobre ela se calaram ou fizeram algum comentário critico mais fundado na amizade do que no valor artístico da obra. São inúmeros esses exemplos.
O intelectual deve, portanto, tomar cuidado, auscultar sua consciência, conhecer melhor suas possibilidades e ser, antes de tudo, um severo crítico de si mesmo.
Encontrar o caminho mais afinado com o seu talento - e é aqui que a repercussão dos leitores conhecidos ou desconhecidos – vai jogar um papel decisivo – será a maneira mais correta de o intelectual não se iludir com uma suposta vocação para ficcionista.
Naturalmente, há os talentos múltiplos, que produzem, até em nível acima da mediania, abrangendo gêneros literários diversos. São as exceções. Todavia, mesmo neste caso, o talento múltiplo tem gradações qualitativas e de competência com frequência desigual com relação aos inúmeros gêneros por eles cultivados.
Um mínimo de autocrítica e, sobretudo, estar atento às repercussões dos leitores e de pessoas conhecedoras de literatura, tais como críticos, teóricos, professores de letras, amigos amantes de livros, escritores. Serão estes que servirão de baliza para que o candidato a escritor reconheça suas limitações e se dedique com mais intensidade aos reais talentos com que a natureza o prodigalizou.
Ante todas essas considerações, julgo que de alguma forma respondi à indagação de meu filho e à expectativa de algum leitor.

sexta-feira, 25 de fevereiro de 2011

FLAGRANTES & INSIGHTS

ELMAR CARVALHO

ECLIPSE

Como não é incomum acontecer nas pequenas cidades interioranas, sobretudo quando chove, a energia elétrica não deu o ar de sua graça, de modo que o motel Eclipse, localizado na margem da BR, estava completamente invisível na escuridão da noite chuvosa. Nunca o seu sugestivo nome foi tão apropriado. O indigitado motel literalmente sofrera um eclipse.