quarta-feira, 14 de novembro de 2012

AS VÍSCERAS DA VIDA



14 de novembro   Diário Incontínuo

AS VÍSCERAS DA VIDA

Elmar Carvalho


Quando sofri o acidente, menos de dois meses atrás, em consequência do qual a seguradora e a oficina autorizada consideraram que o meu carro sofrera perda total, pensei em escrever sobre um acidente que não sofri, quase por um milagre. O fato aconteceu em 1983 ou 1984. Nessa época, eu ainda não tinha carro. Possuía uma motocicleta, que dirigia com cuidado pelas ruas de Teresina, que ainda não eram infestadas de veículos, como no violento trânsito de hoje.

Eu aguardava o ônibus procedente de Parnaíba, da extinta empresa Marimbá, que traria a Fátima, nas proximidades da Ladeira do Uruguai. Para passar o tempo, fui passear de moto pelas imediações. Quando eu fazia o percurso, na avenida João XXIII, no sentido periferia – centro, na faixa da esquerda, perto do canteiro central, vi, ao longe, os faróis acesos de um carro. Devia ser um pouco mais de onze horas da noite. Continuei meu trajeto em baixa velocidade, quando senti o impulso de olhar novamente para trás.

Foi, então, que vi um automóvel se aproximando perigosamente da traseira de minha motocicleta, em altíssima velocidade. Não vacilei uma fração de segundo sequer, e girei o guidão com força para a direita, em direção à faixa central. Como um bólido, quase raspando a moto e tirando fina no meio-fio do passeio, passou um automóvel grande, algo semelhante a um possante Maverick. A velocidade que ele desenvolvia era tão alta chega levantou poeira do canteiro central, que não era pavimentado.

Só então tive tempo de ter medo, quando já não mais existia o perigo. A adrenalina me energizou o corpo, provocando-me arrepios. Senti que um quase milagre acontecera, livrando-me de uma morte estúpida e gratuita, ainda em minha mocidade, quando eu ainda fazia o curso de Direito e sequer ainda era casado. Tenho certeza de que se eu tivesse titubeado, por fração de segundo que fosse, em tomar a decisão de dar uma guinada na moto para a direita, teria sido colhido em cheio por aquele carro maluco, voando fatal e espetacularmente para a morte. Se eu tivesse demorado um átimo para olhar para trás, já não iria olhar para mais nada, pois certamente iria morrer.

Não sei o que me levou a ter a intuição de olhar para trás, no momento exato em que ainda poderia fazer uma manobra motociclística defensiva. Teria sido mera coincidência, mero reflexo sensorial? Não sei. Sei que considerei tudo um milagre. Ainda hoje penso sobre o significado de eu ter morrido aos 27 ou 28 anos de idade. Amadureci muito espiritualmente dessa faixa etária para cá.

Muitas experiências e ensinamentos amealhei de lá a esta parte. Penso que, como ser espiritual contido num invólucro corporal ou físico, evoluí nesses anos todos. Mesmo em termos de curriculum vitae, muitas conquistas obtive de lá para cá, como publicação de livros, criações literárias, ingressos em instituições culturais, mudanças profissionais, casamento, filhos etc. Teria morrido em plena mocidade, como os poetas românticos. Sequer teria tido a oportunidade de cunhar uns versos ou uma frase de efeito, como Álvares de Azevedo, que ao morrer teria murmurado: “Que fatalidade, meu pai!” De qualquer modo, verso e anverso de uma mesma e única moeda, a vida e a morte são duas fatalidades a que não podemos fugir.

Tempos depois, num romance policial, li um trecho cuja metáfora nunca esqueci. Uma personagem caminhava por uma rua, quando um objeto caiu do alto de um edifício no exato lugar em que ela mal acabara de passar. A personagem ficou impressionada, e disse ter tido a sensação de que alguém destampara a caixa da vida, para lhe mostrar as suas frágeis e delicadas engrenagens em pleno movimento sincronizado, mas de mútua dependência.

No meu caso, tive a nítida certeza da fragilidade da vida, e também observei como funcionavam as engrenagens vulneráveis de suas vísceras, que me foram entremostradas em um átimo de segundo. Senti quão frágeis são os fios da vida, tecidos pelas Parcas, e que Átropos cortava. Tão frágeis, que sequer havia necessidade da tesoura que ela manejava sem complacência e sem remorso; apenas no cumprimento de um dever que os fados ou os deuses lhe impuseram, e que ela talvez não houvera desejado.

terça-feira, 13 de novembro de 2012

ENIGMA


ENIGMA

Elmar Carvalho

entre o som
        o sono
        o sonho
        a sombra e a sobra
eu me decomponho
    em escombros
em farpas e agulhas
  escarpas e fagulhas
                  desfeito enfim
                  em fogos de artifício
                  feito estrelas de mim
esfinge autoantropofágica que
não se decifrou e que a si
mesma se devorou

segunda-feira, 12 de novembro de 2012

No coração do capitalismo


Cunha e Silva Filho

A bonita e simpática correspondente brasileira da Globo News, visivelmente preocupada, procura, no entanto, passar – sem o conseguir - a tranquilidade , ou melhor, a frieza e objetividade das notícias sobre o Furacão Sandy. O desastre está iminente. Vem mesmo.

As autoridades americanas, governadores, prefeitos, o próprio Presidente Obama esquecem os problemas comuns de governo e se concentram no maior de todos os problemas que agora enfrenta uma nação tão poderosa, amada e odiada, bela e lugar de tantos sonhos americanos e de bem-estar oferecido pela “Terra da Oportunidade”, salvação de tantos imigrantes, melting pot universal onde convivem pacificamente pessoas de diferentes culturas, onde se ouve falar uma multiplicidade de idiomas. Quer-se referir àquele Furacão com ventos catastróficos, chuvas torrenciais, mar encapelado com ondas altíssimas a ponto de saírem das margens e se arrastarem por ruas de Nova Iorque.

Toda a cidade de Nova Iorque assemelha-se a uma cidade-fantasma. Nas suas ruas, vemos barricadas e outras artefatos de proteção. O centro nervoso está entregue às baratas. Todos corrrem para lugares mais seguros,. As água do mar inunda alguns metros das ruas. A bela cidade, a Big Apple, está triste e desolada, porque se o que ela detesta é não ver suas ruas apinhadas de pessoas de toda a parte. Até a Bolsa de Valores deixou de funcionar ontem, hoje, e talvez ainda não funcioná amanhã. Tudo está paralisado. As ruas, escuras, A Times Square, sempre movimentadíssima e glamurosa, está molhada e sozinha. As pessoas, parece-me, não quererem acreditar no que estão vendo acontecer na bela cidade, metrópole do mundo, sonho de todos os turistas. Só alguns homens e mulheres da imprensa internacional são vistos, encapuzados, molhados, friorentos, fazendo alguma possível transmissão ao mundo, como os nossos corajosos correspondentes que enfrentam ainda no cumprimento do dever os riscos a que estão sujeitos em qualquer momento da reportagem.

O rio Hudson está também bravio, aumentando as águas. A Estátua da Liberdade, do alto, ofuscada pela ventania gigantesca, ainda dá algum sinal de vida. Nova Iorque é o coração do mundo, nos negócios, no lazer, no turismo, nas viagens de estudantes estrangeiros, na esperança de imigrantes procurando uma chance de trabalho, difícil nestes tempos bicudos de uma economia abalada.

Não gosto de filmes que retratam uma Nova Iorque apocalíptica. Ideia sem graça e que nada contribui para a grandeza da cidade. Nova Iorque foi feita para a alegria, a vida cultural, para seus espetáculos na Broadway, ou off Broadway. Nova Iorque foi feita para o sorriso, a alegria, o encantamento. Nunca teve nem terá vocação para o isolamento, o fantasmagórico, a solidão. Nova Iorque precisa de gente muita gente, de turistas, muitos turistas, de pessoas que querem visitar inúmeros lugares importantes.

Seus prédios imponentes, seus edifícios e arranha-céus luminosos, suas ruas elegantes, seus bares e restaurantes, sua segurança , tudo convida à diversão e ao lazer.

Certamente, o Furacão Sandy há de arrefecer sua fúria e deixará em paz Nova Iorque e outras partes devastadas da costa americana. Sei também que os acts of God têm algum sentido de lição aos homens: a de que os homens, em toda a parte do mundo, devem ser mais humanos e mais humildes e, olhando-se interiormente, perceberem quão pequenos somos todos na face da Terra que, por sua vez, é um pingo de areia no Universo. A palavra Sandy tem um sentido que vai mais fundo na nossa imaginação. Em inglês, sand, quer dizer areia, e Sandy, um adjetivo, arenoso, cheio de areia. Não é isso significativo, leitor? O que é a areia senão o isolamento, a destruição, o esfarelamento, o desaparecimento de tudo o que a cultura artificial pode construir? O termo areia está associado a castelo, castelo de areia, algo que se faz e se desfaz em segundos, ou algo com que se sonha de grandioso e , de repente, se perde entre nossos dedos.

Nova Iorque, de alguma forma, poder-se-ia chamar de centro do mundo pela sua importância em vários e múltiplos aspectos de sua vida e de suas funções como megalópole. E, por ser assim, é que, metonicamente, o que nela acontece tem repercussão imediata no resto do planeta.

Espero que, no momento em que escrevo estas linhas, alguma coisa tenha melhorado nas cidades americanas atingidas violentamente pelas forças da Natureza.

Tudo que está acontecendo nos Estados Unidos é oportunidade para reflexão sobre a questão do cuidado que o homem deve ter com a Terra. Já é tempo de parar com tanta depredação no planeta, em geral devastação ambiental visando ao lucro, à cupidez, ao desregramento desencadeados pela sede incontida de acumulação de riqueza a qualquer preço, seja pelos países como governos, seja por homens individualmente, de todos os setores da atividade humana, e sobretudo dos que fazem do dinheiro, dos negócios, a maior razão da existência. Sejamos mais sensatos, não somos individualmente, o umbigo do mundo. Há muitas terras no planeta com povos famintos, sem instrução, sem saúde, sem nada, clamando por socorro permanente. Isso, em toda a parte, inclusive no Brasil.

Creio que a humanidade dará um passo melhor em seu convívio universal quando os egoísmos forem diminuídos e mesmo apagados do coração das pessoas. Dirão que sou um sonhador, um uópico, um nefelibata como diziam dos poetas simbolistas. Não, nesta altura da minha vida, eu teria mais inclinação pela casmurrice, pela desesperança, pelo pessimismo, se levasse em conta o que de repugnante tenho visto e sabido do que andam fazendo os homens no planeta nos mais diversos segmentos da vida social, ou seja, na política, na vida pública, no comportamento social, nas relações interpessoais.

A não ver toda a sordidez que se nos apresenta o palco da existência, seríamos uns Cândidos ainda mais ingênuos do que o personagem de Voltaire (1694-1778). Vejo, finalmente, a harmonia do planeta como uma decorrência da felicidade sincera entre os homens, entre os homens e a Natureza, sem todo esse arcabouço de alta e nefasta burocracia huxleyana ou mesmo os olhos onipotentes orwellianos da sua exagerada dependência tecnológico-científica e hipertrofiada confiança de que ele, só ele, pode enfeixar, em suas mãos prepotentes e babélicas, o destino de vida e morte da humanidade.

domingo, 11 de novembro de 2012

SESSÃO NOSTALGIA


Texto e charge: Gervásio Castro



Em "M*A*S*H*" (que originou uma série de televisão homônima) médicos encaram a missão de forma debochada e irreverente, num posto hospitalar do exército norte-americano. Apesar de ser situado em plena Guerra da Coréia, o único tiro ouvido no filme é o utilizado para interromper uma partida de futebol. Mike Altman, filho do diretor Robert Altman, compôs a parte lírica da música-tema quando tinha apenas 14 anos.

Seleta Piauiense - Isabel Vilhena


ALMA DAS COISAS

Isabel Vilhena (1896 - 1988)



Olhando a serra, lá distante,

E o sol que sobre a serra desce,

Escuto nesse instante

O pássaro feliz e as flores da campina,

O arvoredo que vive sem saber

Agasalhando a paz dos ninhos,

Dizerem sua prece!

E quando no horizonte o dia acorda,

Na pompa da alvorada,

À hora virginal do amanhecer,

É para mim como se eu mesma visse

O próprio Deus olhando para o mundo!

Então, minha alma reza ajoelhada,

Em silêncio profundo,

A prece mais bonita que eu já disse

E que a ninguém na terra eu vou dizer!

Ao ver o rio deslizar sereno,

Na sua vida plena de bonança,

Nessa marcha saudosa de partida,

Refletindo no espelho de águas mansas

Um retalho do céu todo estrelado,

Os ninhos e um pedaço da montanha,

Eu o comparo àquele que, na vida,

É bem feliz, porque o rio

Sonha acordado...

E sem saber que sonha!

sexta-feira, 9 de novembro de 2012

Tony, vida de padreco



Fonseca Neto

Um dos mais cultos e didaticamente apetrechados entre os já muitos professores que tive na vida. 
Professor de Francês no ginásio, primeira série, primeiro dia de aula, sete da manhã: chega em nossa sala, e turma, toma uma barra de giz, desenha uma imagem no quadro e pergunta o que significa e todos dizem que aquilo é “um chapéu”.  
Deixa o suspense e então escreve: Antoine de Saint-Exupéry – “Le Petit Prince”. Contou, a seguir, a história de um francês, piloto-menino, e a narrativa que criou e se transformou na obra literária mais conhecida depois dos livros bíblicos de nossa tradição.
Assim ele começou o curso e, traduzindo o prenome do autor e o título da obra, apresentou-se a nós, dizendo que assim também se chamava,“Antonio”, e que ali viera como nosso professor de Francês: Antonio Luiz de Macedo Costa. Disse-nos que podíamos chamá-lo de Tony(assim a cidade de Colinas o conhecia). Para nós, professor Tony Macedo. E nos cochichos uns com os outros, a conversa de que ele, quase padre, deixara a batina para se casar. Era o início do ano letivo de 1967.
As décadas passaram. Há poucos dias, visitando ele Timon e Teresina, deixou-me uma preciosidade: “Minha Vida de Padreco”, um livro-memória de seu tempo de seminarista em Caxias e no Seminário da Prainha, no Ceará. Nele, um mergulho narrado e muito significativo quanto às apreensões que marcavam um candidato ao sacerdócio católico na década de 1950. Um capítulo muito especial da história desse que é, em mais de século e meio, no Brasil, um dos principais centros de formação de padres. 
Nessa “autobiografia do meu lado seminarista”, Tony diz de sua história, desde Colinas, Maranhão, cidade natal, até Fortaleza, onde o sobredito Seminário Maior. O convívio familiar e a decisão de ser o segundo padre da família – o irmão mais velho, José Manuel, já fora ordenado, e entrado no paroquiato da própria Colinas. Narra o papel de dona Didé e os bastidores de agruras e alegrias imensas de sua mãe oferecendo padres à Igreja. E o abatimento em face da desistência de um deles.
O ambiente seminarístico do tempo, por inteiro, vem referido, em curtos capítulos, em narrativas prazerosas de ler, em cinco partes: “Visão histórica da carreira: do ingresso ao abandono”; “Personagens, parceiros e coadjuvantes”; “Episódios pitorescos do cotidiano seminarístico”; “Um balanço – o que aprendi e o que aproveitei no Seminário”; “Lembranças especiais”. Distinga-se o que ele coloca sobre as bases e modos de como se dava a formação intelectual, humanística e postural de um sacerdote, necessariamente um esmerado leitor, na contemplação solitária imersa no silêncio e nas públicas liturgias. Um exegeta, no cogitar em busca do conhecimento de si, e da criatura humana, como instrumentos animados e sujeitos da fé. 
Tony dedica várias linhas à questão do drama pessoal do adolescente e jovem seminarista ante o celibato – afinal, um dos elementos a afastá-lo da experiência – e as impulsões de passar dos namoricos ao namoro, propriamente. Lembra o peso da batina preta vestindo um rapaz e a estranha atração desconcertante que isso desencadeava entre as mulheres-meninas. Em internatos de controles muito rígidos quanto às manifestações da sexualidade, lembra as angústias dos seminaristas, incompartilháveis, de amores platônicos e quase sempre destinadas ao confessionário –sim, a recorrência ao “in manu alivium”, “ex manus placere”.
A igreja perdeu um padre, mas a formação densa que obteve em nove anos estudando para sê-lo, o fizeram um pai, cidadão e educador de primeira qualidade. Na própria Colinas, partilhou com o irmão José Manuel, padre, uma exuberante experiência educacional – o Cinec, “novo sol no horizonte a nascer”.Em São Luís, do Cema e TV Educativa. Casou-se com Idesina Serra e Silva, de Timon, com quem tem cinco filhos: Sylvia Helena, Tony Júnior, Ana Beatriz, Marcus Vinicius e Jorge Gustavo. Foi para Minas, ali outro e belo horizonte em sua vida.Um mestre, na acepção de outro Tony que conheço em Teresina. Bravo!

Enéas Barros lança livro em Parnaíba




O escritor Eneas Barros lança dia 13, em Parnaíba, às 19h, seu novo livro. "Nonon, o menino da Lagoa Grande" será apresentado aos parnaíbanos no Hall da Associação Comercial (espaço cultural Porto das Barcas), com discurso proferido pelo escritor Alcenor Candeira Filho. A obra será lançada em breve em Picos-PI.

Fonte: Portal Entretextos

quinta-feira, 8 de novembro de 2012

Lançamento de 1964: O DNA DA CORRUPÇÃO


Barras no dia dos mortos



Dílson Lages Monteiro


         Ainda se confunde a noite com o dia, mas nos paralelepípedos o caminhar converge para o alto do morro, no Matadouro, onde o indício da existência encontrou o porto derradeiro. De velas em mãos e pensamentos no após, os cristãos misturam o passado e o porvir e rendem homenagens ao tempo e à brevidade do ar que respiram.

       E esse também o meu percurso, neste dois de novembro, quando paro para “celebrar” os dias cuja memória conservou na imaterialidade do que é morto. Subo o morro de trajeto muitas vezes melancólico, na redimensão das ausências que o tempo vai moldando ou sufocando, à proporção do tamanho da juventude e da certeza do cavalgar uniforme das horas.

       Paradoxalmente, o momento também significa luz. O brilho do olhar se reflete no ideal da longevidade; na satisfação de recordar dos tios-bisavós, cujas famílias numerosas de outras eras conseguiam gerar. Helena Carvalho olhando para o adro da igreja; Chico Luiz, ainda guiando a C10 numa Barras quase desprovida de automóveis; Maria Alice rumo ao Poço do Fio, onde o Marataoã cabia na palma dos olhos.

       A reinvenção do olhar regozija-se também na casa de Dasinha. Lá, o presépio da bisavó aduba o sonho e estar em Belém ou na sala, pequena para tantos enfeites, é similar, porque presépio e sala se somam às cores de uma fé que apaixona. Dasinha, invadida pelo gosto de jasmins, pela casa de frondosas goiabeiras, cujo cheiro gruda-se à pele e acompanha o menino rua afora. Dasinha, de cadeira em mão, a caminho da igreja em dia de procissão.

       O menino amadureceu, mas o ontem é hoje O avô Manuel, na estrada dos Tipis, admirando o horizonte sob a carroça abundante de netos. O avô e os netos, nos banhos no Tanque ou no Açude. O avô e os netos, atentos ao dominó à luz de lamparinas. O avô e os netos, no terreiro da fazenda a dividirem a semi-escuridão do céu esculpido com a arte de  Deus.

       O ontem é hoje. Os tios-avós, também. José Lages na LBA. José Lages na madrugada da criança em febre ardente a tremer por inteiro. José Lages de conversas norteadas de lições para a vida inteira. Assim como ele, ainda caminha imaginariamente pela cidade Alcides, de cabeça raspada (disse-me um dia que foi uma aposta), a dar o dinheiro dos bombons, a contar a história de Maria da Assunção, a exaltar as façanhas de prefeito.

        Ainda caminham os vizinhos mortos. Pedro Alves Furtado, quem descobri ser, além de poeta, o marceneiro que lapidou o próprio caixão, para esperar o dia final; Luizinho do Carmo, na manobra da máquina de costura; Antônio Maria, pedalando em disparada para o rio. Mortos; materialmente, mortos. Porém, vivos no sangue e no afeto dos que multiplicam a história ou, de repente, interrompem-na.

        A cidade, cotidianamente, alimento vital para o sentir, é neste amálgama de tempos uma casa fechada. A cidade e seu cemitério. As reminiscências mais ternas do pai, vencido já agora pela brevidade do ser. Os passeios de bicicleta. A companhia no Marataoã. A atenção de quem nasce para ouvir. O despertar na madrugada para encarar a natureza como gente. A sensibilidade maior que si. Tudo em cinzas se verteu. Em pó e adubo.

        Ficaram essas lembranças e os nomes que a Gonçalo antecederam. Os nomes e destinos entre Jerumenha e Água Branca. Agostinho da Costa e Silva, no Baixão do Coco, em Amarante, parte antecipadamente e se enfileira no Cemitério da Cruz das Almas, onde, talvez, Raimunda Soares Ribeiro repouse depois do parto mal-sucedido. Umbelino do Rego Monteiro e Raimunda Soares de Neiva, entre o Jardim do Mulato e o Tanque dos Umbelinos, alongam o céu. Manuel Barbosa do Rego Monteiro e Laudelina Soares Ribeiro, a fotografia no armário. Nomes e destinos que a poeira vai congelando e arquivando para sempre, no vazio do desaparecimento.


       Subo o morro de trajeto melancólico. No campo santo, Trasíbulo é o túmulo esquecido. Filomena Rosa, fragmento de mármore atirado ao sol. Os taratavós e sua íntima essência são o silêncio do desconhecido. Mortos e esquecidos na aparência do efêmero. Mas vivos, eles e todos de minha linhagem, quando subo o morro, enquanto viver, para deles me lembrar. Nem que seja apenas por um instante. Para deles me lembrar, se não pela dor da saudade, pela certeza de que existiram um dia, porque eu existo.

quarta-feira, 7 de novembro de 2012

O DIA DE FINADOS E OS “MEUS” CEMITÉRIOS



7 de novembro

O DIA DE FINADOS E OS “MEUS” CEMITÉRIOS

Elmar Carvalho

Sabendo que não iria a nenhum cemitério no Dia de Finados, decidi reler a crônica de Clodoaldo Freitas intitulada O Dia de Finados, enfeixada no livro Em Roda dos Fatos. Nela estão contidas profundas reflexões sobre a morte humana, de caráter religioso, filosófico e histórico. Não irei, neste breve registro, fazer reflexões sobre esse tema, para alguns tão cheio de medos e mistérios, mas apenas retomarei umas ideias que já defendi em outra oportunidade, creio que neste mesmo diário. Essa matéria foi publicada na internet, em alguns sítios eletrônicos.

Ainda no inicio de minha adolescência, estive em cemitério algumas vezes, movido mais por curiosidade intelectual e artística, para ver as linhas arquitetônicas dos túmulos e a beleza das esculturas de anjos e santos, e também para ler as lápides, em busca de descobrir figuras históricas ou simples conhecidos e parentes. Em alguns casos, fazia um rápido cálculo mental, para saber quantos anos o morto tinha vivido. Segundo as inscrições, todos haviam sido bons e deixado saudades.

Estive sobretudo nos cemitérios velhos de José de Freitas e de Campo Maior. Neste, descobri, quando tinha 16 anos de idade, o túmulo do poeta Moisés Eulálio, que terminou me rendendo uma crônica, publicada no jornal A Luta, a pedido de meu pai. Foi um de meus primeiros textos a ganhar publicidade em letra de forma. Era um dos diretores do periódico Octacílio Eulálio, irmão do poeta.

Tempos mais tarde, já no final dos anos 80, ou começo dos 90, ciceroneado por Carlos Rubem Campos, escritor e promotor de Justiça, conheci o cemitério velho de Oeiras. Na oportunidade, conheci o túmulo do grande poeta Nogueira Tapety, em cuja lápide consta que ele amou o bem e o belo. Antes, eu havia escrito uma crítica literária sobre o autor de Senhora da Bondade, soneto antológico, por muitos recitado de cor. Instigado pelo advogado Talver Mendes de Carvalho, escrevi uma ode a esse vetusto campo santo, que é tão histórico e valioso quanto os demais.


Recentemente, defendi a ideia de que o velho campo santo de Campo Maior fosse restaurado e transformado numa espécie de museu a céu aberto. Para isso, deveria haver projeto de arquiteto experimentado em restaurações. Na minha proposta, haveria algumas pequenas intervenções, como a criação de alamedas, jardins e caramanchões, a colocação de esculturas alegóricas, a construção de um monumento/memorial e de um espaço ecumênico, em que as pessoas pudessem se reunir para cultos ou mesmo palestras temáticas. Além do aspecto da preservação histórica e cultural, esse projeto serviria para que as pessoas melhor aceitassem a morte, que é uma consequência da própria vida, ou o portal para uma outra vida.

Acredito que essa obra de conservação e restauração, tal como estou defendendo, seria única, se não no Brasil, pelo menos o seria no Piauí. Os cemitérios em nossas cidades, depois de desativados para sepultamentos, são praticamente abandonados, ou passam a ser mais mal cuidados do que já eram antes. Alguns são estupidamente destruídos, para a construção de algum logradouro, seja rua ou praça. No modo como estou propondo, haveria conservação e restauração, sem prejuízo das intervenções, que seriam feitas de forma cuidadosa, criteriosa e como parte de um projeto de arquitetura.

A obra que estou a defender creio seria única, ao menos no Piauí, e preservaria a história, a cultura, o respeito aos mortos e à sua memória, além de que seria, como disse, um museu e um local para reflexão, passeio e reuniões, em que se discutiriam temas apropriados. Certamente, seria um local aprazível e belo, pois nele haveria muitas árvores, alamedas, caramanchões, jardins, monumento/memorial e esculturas. Tornar-se-ia o velho cemitério campomaiorense um lugar mais comprometido com a vida do que apenas com a ideia de morte. A morte seria apenas um detalhe, embora óbvio. 

terça-feira, 6 de novembro de 2012

Rosinha Vasco



Fonseca Neto

A região sul do Maranhão antigo tinha como lugar-capital a hoje cidade de Pastos Bons, cuja fundação não índia se deu há três séculos e com famílias oriundas das capitanias coloniais da Bahia, Pernambuco e Ceará. É a dilatação da formação social gadeira que também explica o Piauí.

A partir da sede do Julgado de Pastos Bons, os curraleiros da família Coelho, vindos do médio São Francisco, multiplicar-se-iam por aqueles sertões quase infindos, um céu aos olhos dos chegantes, não fossem as desafiadoras armadilhas de sua natureza bravia e a justa resistência de sua gente ancestral nativa.

Com essa observação de sentido histórico geral, quero recordar um importante acontecimento ocorrido neste domingo, dia 21, na cidade de Passagem Franca, municipalidade tributária de Pastos Bons, e destino de parte do seu coelhado: o centenário de Rosa Vasco de Sousa Coelho, dona Rosinha Vasco. Ao que sabemos, a pessoa mais idosa de nossa cidade, nascida a 21 de outubro de 1912. 

Rosinha é filha de Ana Gonçalves e Antonio Vasco de Sousa Coelho, o “Senhor Vasco”, casal que, além dela, gerou os filhos Cândido, João Enoque, João Batista, José (“Lô Vasco”), Felipe, Manoel, Raimundo (“Senhor Vasco”), Emerenciana (“Merença”), Maria de Lourdes, Maria (“Sidoca”) e Francisca (“Inhá”). Ana e Antonio viveram e tiveram seus filhos no município de Passagem Franca, sitiantes do “São Bento”, em meio aos senhorios territoriais de suas famílias que ali se foram fundindo por entrelaçamentos familiares-latifundiais, sobretudo com os Pereira de Sá, Brandão, Moreira Lima, Araújo. Pais de Antonio e avós paternos de Rosinha: dona Emerenciana de Sousa Lima e José Vasco de Sousa Coelho, tenente-coronel e comandante da Guarda Nacional, político de projeção, deputado provincial e deputado geral no RJ no tempo do Império (12ª Legislatura, 1864-66).

As gerações mais próximas conhecem Rosinha, e conheceram seus irmãos, como descendentes de uma família ilustre que deteve o controle consecutivo da administração municipal passagense, desde meados do Oitocentos até os anos 1920, e, depois, com intermitência, por netos e bisnetos, até 1970. 

Desde a década de 30, moradoras ao Largo da Matriz de São Sebastião, as “irmãs Vasco” (Rosinha, Inhá, Lourdes e Merença) marcaram a vida comunitária local pelos vínculos muito fortes com a igreja, na condição de “zeladoras”, efetivas dirigentes das associações do Sagrado Coração e da Associação de São José, assim devotas“filhas de Maria”. Impossível imaginar um evento na matriz – especialmente missas – sem a presença delas, sentadas à primeira fila da bancada, com seus elegantes e almofadados genuflexórios. Ainda quando somente partilhavam a Comunhão os que estavam em rígido estado de jejum, lá iam elas – às vezessomente elas – comungando, contritas, nas missas cotidianas das matinas (e do campanário eu via, nesses dias, minha cidade despertando sob a cor do mais belo arrebol que habita minha memória). Às vezes retardavam um pouco e depois da missa iam à sacristia se justificar dizendo ao padre que o atraso se devera ao fato de estarem a ouvir a “Oração Por Um dia Feliz”, de d. Avelar Brandão, pela distante Rádio Pioneira de Teresina. 

Rosinha (e assim dona Inhá) não teve matrimônio; essa circunstância certamente facilitou sua dedicação à igreja e à sua mãe, falecida com quase cem anos. Toalhas, guardanapos, panôs e alfaias em geral do serviço litúrgico, eram regiamente tratados por essas zeladoras. De igual maneira, os altares, nichos e sacras imagens, sempre ornados com arranjos florais naturais ou artificiais de bom gosto (aliás, nunca esquecerei, porque conferi muitas vezes, quanto os olhos brilhantemente verdes, e o próprio rosto de dona Rosinha, se parecem com um dos três anjos barrocos e seus olhos verde-azulados,esculpidos aos pés de uma secular imagem de NS da Conceição existente na capela-mor).

Ótimo: sábado, 20, por telefone, perguntei por ela ao padre Vicente, seu amigo, e ele foi logo dizendo, com graça: “já comi hoje mesmo uma coxa do capão dos 100 anos”. Coisas da Passagem. Coisas que lembrar faz bem.

segunda-feira, 5 de novembro de 2012

O crime ronda o país



Cunha e Silva Filho

Se a parte está no todo, o todo está na parte. Apesar desta formulação que nos lembra um sermão de Vieira, basta um exemplo de mais uma tragédia no cenário interno de uma república de estudante no Jardim Botânico para que reitere o fato de que o atual momento do país evidencia uma das fases mais violentas por que está atravessando a sociedade brasileira. Não é só no Rio, é em São Paulo, nas cidades do interior, nas capitais dos estados.Trágica pandemia de crimes de todas as espécies, de todos os níveis, de todas as crueldades.

Um jovem e promissor estudante cearense, José Leandro Pinheiro, é mais uma vítima de assassínio no Rio de Janeiro. Foi encontrado morto com golpes de facada no seu quarto que dividia com um outro estudante.Vem, agora, uma reflexão, morei aqui no Rio em república de estudante na tempo de preparação para o vestibular e a com vivência que tive com meus colegas de quartos era a melhor possível, com muita amizade e camaradagem, distante, pois, dos perigos de hoje enfrentados pela juventude e pelo próprio clima de hostilidade vivido por nossa juventude. Tão bons foram aqueles tempos que me deixaram lembranças gratas e perenes!

José Leandro, conforme informações da imprensa, foi aluno exemplar da Universidade Federal do Ceará. Transferiu-se paro Rio a fim de cursar o mestrado na área de matemática no respeitado IMPA (Instituto Nacional de Matemática  Pura e Aplicada). Segundo ainda depoimentos tanto da família quanto de colegas, o jovem mestrando era pessoa inteiramente devotada aos estudos. Não tinha vício, era bem estimado por seus colegas que lhe elogiavam a inteligência e as atitudes. Sua morte, ainda sob investigação, aponta para um mistério, não obstante um colega com quem compartilhava moradia, já tenha sido apontado como um suposto autor do crime.

Filho de uma professora do interior do Ceará e de um trabalhador rural, o brilhante estudante teve precoce cortadas e abruptamente cortas  todas as esperanças que nele depositavam os país, os amigos e por certo também os professores e colegas de mestrado. Naturalmente, tudo indicava que faria o doutorado na mesma grande instituição. Todo esse futuro lhe foi negado pela assustadora agressividade. Não, não foram mãos humanas que perpetraram tal homicídio hediondo. Não posso crer que tanta insânia possa vir de um suposto companheiro de quarto do estudante. Queira Deus que não tenha sido ele, porque seria mais do que abominável.

Assim como fizeram com José Leandro, outras tantos crimes macabros têm vitimado jovens de ambos os sexos promissores, com a vida toda pela frente.

Novamente, não posso deixar de falar no componente da impunidade que grassa no país, nas leis brandas, nas chamadas penas progressivas, nos indultos imerecidos, nas liberdades concedidas a celerados de alta periculosidade. Não se está fazendo justiça no país.

Nossos jovens estão morrendo, sem proteção, sem socorro, sem a aplicação da Lei com maiúscula. Como anda o Código Penal ainda em vigor e já caduco para a complexidade dos tempos modernos? Quando iremos resgatar a confiança em nossos legisladores e aplicadores de penas? Quando iremos tomar medidas severas e justas para adolescentes que matam outros adolescentes, crianças, adultos e idosos,  às vezes até os próprios  pais? 

Quando iremos atualizar o Estatuto da Criança e do Adolescente? Como irão dosar as sentenças de adolescentes que usam de armas de fogo para matar inocentes em todos os lugares, em casa, na rua, nas estradas, nas lojas, nas farmácias, nos shoppings e outros  lugares?   Quem irá efetivamente para a cadeia, cumprir a pena na sua inteireza para os casos de crimes bárbaros e horripilantes? Que tipo de pena capital deveríamos ter em nosso país?

Obviamente, não estou pensando apenas naquela velha ideia que já virou uma espécie de consenso segundo o qual só pobres, pardos e negros irão para o xadrez. Estou pensando, sim, na prisão para o criminoso independente de raça, credo religioso e condição social. A segregação dos facínoras de todos os naipes do convívio da sociedade brasileira deve ser igual e universal.

Não deve haver complacência, sob hipótese alguma, para os infratores de quaisquer delitos e sobretudo  para os  criminosos cruéis. Tudo na legislação criminal deve ser atualizado e endurecido, tais como “habeas corpus”, liminares e quejandos.

Os órfãos, os pais que perderam filhos por mãos assassinas, as esposas que perderam os maridos, os avós que perderam os netos, os noivos que perderam as noivas, os namorados que perderam as namoradas, os amigos que perderam os amigos. Enfim, as famílias brasileiras estão chorando e as suas  lágrimas  não secam por serem brotadas de crimes recorrentes neste vasto país ainda vivendo a plena impunidade.

A tragédia de José Leandro soma-se, assim, aos milhares de famílias de  vítimas  de crimes nefandos que clamam por justiça imediata e à altura do desenvolvimento alcançado pelo país em tantas áreas.Pouco adianta progresso material se desacompanhado de avanços no campo da segurança individual e coletiva. Desta coluna quero levar à família do jovem matemático os meus sentimentos de pesar, que, como no sermão de Vieira, não são tão-somente meus, mas de todo o povo brasileiro.

domingo, 4 de novembro de 2012

Seleta Piauiense - João Ferry



PIRIPIRI

João Ferry (1895 - 1962)

Piripiri, paus-d'arco em flor, ouro,
Enfeitando a ramagem das florestas,
Uma fonte trancada qual tesouro
E a cidade ridente sempre em festas

Piripiri, tu és meu pensamento,
Tudo que é teu adoro sem receio,
Quero exaltar de ti, num só momento,
Desde a Fonte dos Matos, ao Recreio.

Mocozal, Paciência, o bel Mosquito,
Nos meus versos jamais esquecerei
O Cabresto, riacho tão bonito,
Que até mesmo sem água cantarei.

Garibaldi, de sonhos e quimeras,
Onde viveram tantas ilusões,
Como é doce lembrar as doces eras
Em que as trevas em ti eram clarões.

Nossa Senhora dos Remédios, festas
De outubro tão queridas e tão boas,
Tudo relembro e penso e sonho nestas
Noites de serenatas e de loas.

Flor dos Campos, de campos tão floridos,
Rio dos Matos , fonte de nossa alma,
Passeios domingueiros tão queridos,
Em que a gente pensando perde a calma.

Açude do anajás, ai, come é triste…
Vive sempre a chorar as suas mágoas,
Para nós até mesmo não existe,
Quando as chuvas não trazem suas águas.

Piripiri, falando à tua gente,
Solicito em teu seio o meu ingresso,
Para saudar-te, de prazer contente,
Pela marcha feliz do teu progresso! 

sábado, 3 de novembro de 2012

O DOUTOR JOSÉ LAGES



Chagas Botelho
Barrense, blogueiro e cronista

Não é nenhum arroubo de início de parágrafo não, pelo contrário, é apenas uma boa lembrança da minha primeira vez em um consultório médico. Na pequena e pacata cidade de Barras, principio de noite chuvosa, e lá estava minha mãe me entregando aos cuidados do melhor médico da cidade: o doutor José Lages.

Eu ainda era criança, um mameluco desdentado, mas lembro, nitidamente, da atenção que aquele homem de branco tinha com os seus pacientes. Com medo de tomar injeção, me aproximava meio furtivo, mas ele, o doutor Zé Lages, o melhor médico das Barras, logo me acalmava.

Sua receita era simples, não tinha segredos, apenas carinho, dedicação e paciência. Garotos que sofriam de intensas dores de barriga, como eu, ele sempre tinha a solução mais simples, um bom soro caseiro e claro, um pirulito no final da consulta.
Ás vezes seu atendimento se estendia além-consultório, dando carona para mim e para minha mãe em seu possante Chevrolet, bastava entrar naquela máquina, e pronto, já estava curado.

Quando pequeno tive atrozes dores de barriga, porém, sempre tinha ali, pertinho de mim, para apaziguá-las, o melhor médico da terra dos governadores, o doutor Zé Lages e o seu inconfundível afeto atemporal.

De aspecto franzino, membrana diáfana, de óculos e voz fraca, o doutor José Lages era na verdade um abre-alas da firmeza e competência médica. Ser atendido por ele era inflar de inveja todos os meus coleguinhas.

Quando muitos se apegavam a homeopatia incipiente, modesta, rústica, o doutor Zé Lages, o melhor médico da mesopotâmia do norte do Piauí, fazia jus a sua profissão com avanços significativos.

Até hoje penso que todos os seus pacientes, ricos e pobres, eram na verdade seus ícones de fortuna, pois era tão bem zeloso com todos quanto ao seu diploma pendurado na parede.

O doutor Zé Lages foi o meu primeiro médico, o melhor que tive até hoje, aquele que me acalentava quando as dores abdominais me açoitavam. Se pudesse criaria um pronto-socorro afetivo 24 horas com o nome dele.

Por isso, nesse dia 18 de outubro, dia do médico, com o devido respeito a todos os outros, celebro o dia do doutor José Lages, um verdadeiro amenizador das dores humanas.

sexta-feira, 2 de novembro de 2012

Escritor luzilandense, radicado em Niterói, destaca-se nacionalmente, ganha prêmio e tem poesia em programação nacional do EJA/MEC



O luzilandense Alberto Araújo, escritor, poeta e professor licenciado em Letras-Português pela UESPI de Luzilândia e atualmente mora em Niterói – Rio de Janeiro onde se tornou membro da Academia Niteroiense de Belas Artes Ciências e Letras(ANBA) e do Cenáculo Fluminense de História e Letras. Casado com a psicóloga Shirley Lopes que também é escritora.

Autor de vários livros destaca-se nacionalmente, e recentemente teve uma de suas poesias literárias premiada, “A primeira pessoa do singular” e vai ser lançada na Rede Nacional de Ensino do EJA (Educação de Jovens e Adultos do Ministério da Educação).

No dia 10 de novembro próximo, Alberto Araújo receberá da Academia de Letras e Artes de Goiás Velho – Goiânia, PRÊMIO NACIONAL INTERARTE, na Categoria - Melhor do Escritor, com Livro de Poesias “Caminhos Percorridos – Eu e a Poesia”.

A escolha dos premiados foi baseada em indicações de grandes líderes de academias, associações e entidades de grande valor cultural no Brasil, Alemanha, Chile e Áustria.

Em sua terceira edição nacional, o prêmio INTERARTE, organizado pela Academia de Letras e Artes de Goiás Velho, tem por finalidade prestar homenagem aos artistas que se destacaram durante o ano de 2012. O evento conta com o apoio da ABRASA (Associação Afro Brasileira Para Dança Cultura e Arte) que no próximo ano prestará homenagem a todos os laureados com placa comemorativa na sede da associação na Áustria.

Com efeito, no dia 09 de março de 2013, Alberto Araújo, por ocasião da 8ª Noite de Congraçamento de Luzilandenses em Teresina, a COLUZ vai homenageá-lo com o troféu COLUZ 2013.

É o editor do FOCUS – PORTAL CULTURAL, revista virtual 100% cultural, onde divulga todos os trabalhos culturais fluminenses. Confira no link:

O ROMANCISTA DA MANIÇOBA E DO CANGAÇO




Reginaldo Miranda da Silva
Presidente da APL

Ouvi falar no nome de William Palha Dias, desde cedo, nas conversas de família. É que ficando viúvo, seu pai convolou novas núpcias com uma irmã de minha avó. Mais tarde, também uma sua irmã casou-se com um outro parente. Radicados na povoação de Nova Lapa, hoje cidade de Cristino Castro, então termo de Bom Jesus do Gurguéia, para onde vieram de Caracol, eram hóspedes de meus avós quando vinham a Bertolínia. Era o velho Claudionor Dias, pai do romancista, respeitado rábula, tendo muitas vezes, no exercício profissional, ido à minha Bertolínia natal, a chamado de meu avô, então chefe político de expressão.

Mais tarde, conheci W. Palha Dias em Teresina. Magistrado, romancista, contista, conversador admirável. Membro da Academia Piauiense de Letras e do Instituto Histórico e Geográfico do Piauí. Dia desses li seu romance Vila de Jurema. Livro admirável, retrata o ciclo da maniçoba e do cangaço no Piauí. À visão aguçada de W. Palha Dias não escapa nenhum pormenor: extração do látex, crescimento da povoação de Bom Sucesso e sua emancipação política com o nome de Jurema, invasão de maniçobeiros e jagunços, crendices populares, estórias de lobisomem, feitiços, querelas políticas, adultério, casos de honra, festas do padroeiro com as tradicionais rezas e os forrós tocados pelos violeiros Antão Guaxinim e Domingos Bibiano; nesse mesmo período, apareciam as novidades comerciais trazidas pelo mascate Xanane-Pirrita, principal contato entre aquela população catingueira, como é conhecida, e o mundo exterior, mas não extraordinárias como as que o cigano Melquíades levava para Macondo, em Cem Anos de Solidão, de Gabriel Garcia Marques. No entanto, é ponto alto da narrativa o duelo travado entre o vaqueiro Adriano e o cangaceiro/barraconista Herculano, que caíra de amores não correspondidos pela mulher daquele, cercando a casa e matando o casal. W. Palha Dias, acompanha esse embate dramático deixando à mostra toda uma pujança narrativa  que  prende a atenção do leitor do começo ao fim, com as reflexões, démarches e lances do confronto com rifles “papo-amarelo” e depois com punhais. Era desejo do cangaceiro matar toda a família e até as galinhas do terreiro de sua vítima, felizmente escapando estas e os três filhos menores do indigitado casal, que, por estratégia do vaqueiro conseguiram escapar em meio ao cerrado tiroteio, para a distante casa de um parente.

Não falta a disputa pelo mando político-administrativo da nascente vila, entre os coronéis Veridiano Bernardes e Antero Gomes, aquele natural do lugar, este forasteiro chegado com o surto econômico da maniçoba. Nesse aspecto, W. Palha Dias retrata o passado de sua terra natal, a longínqua cidade de Caracol, plantada no alto da Serra Dois Irmãos. Fácil é se perceber que Vila de Jurema é Caracol, desmembrada do antigo termo de São Romão, nome fictício da serrana cidade de São Raimundo Nonato. O coronel Veridiano Bernardes é seu avô Aureliano Dias, baluarte da fundação de Caracol, ao passo que Antero Gomes é Ângelo Gomes Lima, assim como vários outros personagens secundários são facilmente identificados ao se comparar o romance em referência com o seu livro de estréia, Caracol na História do Piauí (1959). O autor se utilizou desse recurso, e fez muito bem, para ter liberdade na análise de fatos históricos doloridos de relembrar sem ferir suscetibilidades, assim como transitar por lacunas históricas insondáveis, analisando fatos e personagens as mais diversas.

Nessa bela narrativa, W. Palha Dias consegue retratar de forma fiel a vida rude do sertanejo e traçar um grande painel do ciclo da maniçoba no Piauí. Se a Paraíba teve com José Lins do Rego, o seu retratista do ciclo canavieiro e do cangaço, a Bahia com Jorge Amado, o ciclo do cacau, W. Palha Dias resgatou para as letras piauienses o efêmero ciclo da maniçoba e do cangaço. Em sua obra, aparece em toda a sua rudeza a vida do jagunço, a lida da maniçoba e os dias de glória de um curto ciclo econômico que trouxe à evidência a caatinga piauiense. Os catingueiros do Piauí, recebem a sua homenagem, justa e definitiva, na obra de W. Palha Dias, consagrado romancista, cuja obra Vila de Jurema é a continuidade de Endoema, romance de fundo histórico lançado em 1965. E com sua pena prodigiosa, criadora de quase duas dezenas de livros – que se impõem pelo conjunto –, retoma, de certa forma, esse fio narrativo com Marcas do Destino, romance de cunho histórico-biográfico lançado em 2003, cujo personagem narrador sai de Vila de Jurema.

Conforme se disse, Vila de Jurema é o romance-resgate do ciclo da maniçoba e do cangaço, retratando uma importante fase da vida econômica da árida caatinga piauiense, quando a extração e comercialização do látex deu-lhe ares de progresso, fazendo circular a moeda e originando diversas povoações com populações mescladas de maniçobeiros e jagunços, vindos de todos os cantos do sertão nordestino. Por esse tempo, primeiras décadas do século XX, houve uma verdadeira corrida para a caatinga. É quando nascem cidades como Caracol, terra natal do autor, Canto do Buriti, e  algumas outras. É, pois, essa corrida, esse frenesi, a extração e venda do látex, a difícil convivência entre os heterogêneos grupos sociais, que retrata W. Palha Dias em sua obra. Estão aí, pululando nas páginas de seus livros os catingueiros do Piauí, com seu jeito de ser, sua maneira de pensar e agir, seus ajustes de honra baseados na “lei do sertão, que é imutável. Não admite crime sem vingança e nem honra cuja mancha não seja lavada com sangue daquele que a desrespeitou, daquele que a maculou” (p. 208).

Porém, todo esse mundo mítico vem abaixo com a queda do preço da maniçoba, em face do desinteresse da indústria automobilística européia. Sobrevém a decadência. E restam apenas as povoações desertas, as cidades mortas, e a saudosa lembrança de um tempo que se foi. Ficam as conversas tecidas nas rodadas de boca-da-noite, entre um gole e outro de café, por aqueles que não puderam sair, que tinham ali as suas propriedades, as suas parcas economias. Pois, é nesse ambiente que nasce W. Palha Dias, criado ouvindo essas estórias dos parentes e amigos, e guardando-as em sua mente prodigiosa, para mais tarde revelar-nos com o talento que lhe é peculiar. As letras piauienses só têm a agradecer a contribuição desse rebento das costaneiras serranas doisirmãonenses, das reentrâncias e caracóis das serras das capivaras e confusões sertanejas de outrora. Que continue esse belo trabalho de cunho sociológico, trazendo à literatura os costumes de sua gente, áspera, machista, destemida, passional, vingativa, mas profundamente humana. O leitor agradece.

quinta-feira, 1 de novembro de 2012

Memória e identidade em Ribamar Garcia



Dílson Lages Monteiro
Poeta e escritor

Já se disse abundantemente, por meio das mais diversas teorias, que nós leitores é quem, de fato, controlamos a obra literária. Diante da carga polissêmica e polifônica do tipo de manifestação linguística em que se constitui a literatura, nossos conhecimentos de mundo, nossos conhecimentos técnicos, a experiência de leitura se sobreporiam ao propósito comunicativo do autor, cujo controle sobre a obra seria radicalmente minimizado pela força de múltiplas leituras, pelo tempo e pela história.
 
Façamos inicialmente um parêntesis para discordar dessa assertiva, embora o leitor seja verdadeiramente o grande personagem de toda e qualquer obra – e disso, às vezes,  nem se dê conta. Façamos um parêntesis porque há autores (digo, obras), cujo projeto literário vale tanto quanto  o teor das interpretações individuais autorizadas. Ribamar Garcia é um escritor dessa estirpe – o que escreve encontra facilmente ressonância nos leitores. A cada livro, uma promessa convertida em prazer.
 
O que materialmente esperamos de uma obra escrita por Garcia, além de seu estilo de lirismo leve e do humor característico? Para responder a essa indagação, não faremos exercício de crítica literária propriamente dita. Não há neste olhar rigor metodológico, nem busca recorrente de aplicar ou comprovar teorias para um objeto, tampouco o foco na dimensão linguística dos textos, embora sejamos obrigados, por força das especificidades da literatura, a tangenciar a dimensão discursiva da obra.
 
A leitura aqui é, predominantemente, a do prazer, das formas-sons-cheiros, das impressões de um texto que atinge a emoção dos que viveram ou vivem nas pequenas comunidades, sejam rurais, sejam urbanas. A leitura aqui é genérica, pautada em situar temas e destacar qualidades da linguagem do autor.  
 
O que encontraremos, pois, em Contos da Minha Terra, de José Ribamar Garcia?
 
 
Empenhado em entender as transformações de nosso tempo, o sociólogo espanhol Manuel Castells demorou-se por vinte e cinco anos em anotações e estudos para explicar o mundo pós-moderno. Segundo ele, a revolução tecnológica e a reestruturação do capitalismo originaram a sociedade em rede que hoje conhecemos:
 
A revolução da tecnologia da informação e a reestruturação do capitalismo introduziram uma nova forma de sociedade, a sociedade em rede. Essa sociedade é caracterizada pela globalização das atividades econômicas decisivas do ponto de vista estratégico; por sua forma de organização em redes (...). Por uma cultura de virtualidade real construída a partir de um sistema de mídia onipresente, interligado e altamente diversificado. E pela transformação das bases materiais da vida – o tempo e o espaço – mediante a criação de um espaço de fluxos e de um tempo intemporal como expressões das atividades e elites dominantes (p.17).
 
Nesse contexto, uma das consequências mais notórias desse processo é o conflito de identidades. Surgem novos atores sociais, de “atuação fragmentada, muitas vezes isolada, mas sempre em interação com os aparatos do Estado, redes globais e indivíduos centrados em si mesmos”.
 
O mundo ficcional criado por Ribamar Garcia está na contramão da sociedade em rede. Por esse motivo, não bastassem qualidades estilísticas que atestam a grandeza dos textos (a linguagem simples e envolvente, o lirismo comedido de trechos de prosa poética refinada, a ironia recorrente e a estilização do léxico e da sintaxe do piauiense, sobremodo), o autor transpõe para os contos aspectos da paisagem geográfica, social e humana já desaparecidos ou transformados pela dinâmica das mudanças dos novos tempos. O compromisso de Garcia, nesse sentido, é também o compromisso com a memória coletiva, permitindo aos leitores um reordenamento de vivências de tempos e espaços menos controlados pelas relações de poder do que hoje o são.
 
A função social do texto de Garcia revela-se, entre outras nuances, portanto, como compromisso com as memórias dos meninos pobres em recursos materiais, mas ricos em sonhos e perspicácia, no Piauí das décadas de 1940, 1950 e 1960, sobretudo. Debruçando-se principalmente sobre esse tempo, os narradores de cada conto promovem um reencontro com as origens em uma terra de adversidades sociais, ainda que  opulenta em belezas.
 
Como forma particular de conhecimento dos acontecimentos do passado, consistindo da parte de quem rememora, a reativação e reordenação de episódios, em parte ou totalmente, de maneira verídica ou errônea, configura-se a memória, desse modo,  em elemento vital de seu processo de escritura literária. Afinal, como enfatiza Joel Candau, “(...)A narrativa é lógica em ação – (...) a sucessão de episódios biográficos perde seu caráter aleatório e desordenado para se integrar em um continuum o mais lógico possível” (2011, p.74).
 
Acrescenta o antropólogo que “toda a conduta da narrativa produz, portanto, uma ilusão biográfica, uma ficção unificadora”. Nesse particular, o texto transcende, pela manipulação da linguagem, a esfera do real, para atingir o estágio de fenômeno estético.  
 
Em muitas passagens de Contos da Minha Terra, embora esse não seja o viés predominante de sua escritura, a ficção de Garcia adquire cunho biográfico, principalmente quando os narradores materializam determinados lugares. Em vários contos, casas, ruas e edificações servem não apenas para a emergência das recordações, mas também para marcar “o sujeito nos lugares” e  “os lugares no sujeito”.
 
Nessa direção, conforme ressaltam Luis Alberto Brandão e Silvana Pessoa, em análise sobre o sujeito, o tempo e o espaço ficcionais, descrever recintos e objetos “funciona como tentativa de cristalizar o tempo passado, petrificar lugares da memória”(p.85), tarefa que bem caracteriza a intenção do memorialista. Assim procede Garcia, em vários momentos, unindo ficção e memória:
 
Asilo dos Alienados. Mais tarde, batizado de Hospital Psiquiatra Areolino de Abreu em homenagem ao seu fundado. Mas o povo continuou chamando pelo nome de Asilo. Situado na rua ao lado do Estádio Lindolfo Monteiro, em Teresina, por onde passava o ônibus para Timon. Tornou-se ponto de referência – até para os deboches. (...) Chegou até a ser tema de samba da Quinta Velha. Era um prédio esticado, de janelões gradeados, cercado por um muro alto, que escondia de quem passava pela rua o imenso pátio ajardinado e arborizado. Na extremidade do terreno, havia a capela de Santa Teresinha, onde seria realizada a cerimônia da primeira comunhão” (p. 39-40)
                                                                      
Ao inserir a memória coletiva no cerne da criação literária, o autor eleva a identidade a status de primeira estrela no rol das singularidades de Contos da minha Terra. É, pois, a identidade do Piauí – um Piauí de gente e paisagem pitorescas - o grande tema desta obra.   Um Piauí de tropeiros, de um Parnaíba navegável, de luz oriunda de usina elétrica, de trabalho infantil disfarçado de dignidade, de causos e lendas. Essa terra e essa gente que passeiam neste livro são fortemente influenciadas pela interferência do rural sobre o urbano.
 
Por essa razão, essa obra adquire um sentido mais que especial. Vivemos na sociedade em rede, um movimento inverso de contaminação do urbano sobre o rural. O espaço e o tempo de hoje se apresentam como o espaço e o tempo da otimização das atividades produtivas, da criação de novos atores sociais, submetidos a identidades que promovem transformações e mudanças sobre o campo e a cidade, exercendo esta, com o seu modo de vida, não apenas o fascínio sobre aquela, mas alterando suas particularidades. Este Piauí de viver essencialmente rural, tal qual conheceu o autor e muitos dos aqui presentes, vai sendo sepultado pelo vigor das mudanças sociais, mas permanece sob a forma das representações criadas por autores como Ribamar Garcia, que faz de suas origens a grande matéria prima de seu oficio.
 
Enfatiza o autor, nestes contos, que se ambientam em Teresina e no interior do Estado, as relações cotidianas – o dia a dia da gente simples - e a linguagem piauiense em palavras bem nossas como “fogoió”. Entre os temas, o fascínio do contato com tecnologias (o automóvel, o barco a vapor, a energia elétrica, a maquina de pilar arroz); a atividade laboral de trabalhadores braçais e o êxtase da novidade nas viagens entre Teresina e o interior do Estado.
 
Em Contos da minha Terra, o leitor se emocionará com a vida em torno das pequenas cidades à margem do Parnaíba, com os dramas dos extratos sociais desfavorecidos, com o retrato de um Piauí ainda provinciano. Ao focalizar esses temas, Ribamar Garcia enfatiza costumes e o léxico regional, filtrados por um estilo, embora não seja explícito na superfície textual, acentuadamente memorialístico, em textos que, além de literatura por excelência, são documentos de uma terra e de sua gente.
 
Anota Joel Candau:
 
Através da memória, o indivíduo capta e compreende  continuamente o mundo, manifesta suas intenções a esse respeito, estrutura-o e coloca-o em ordem (tanto no tempo como no espaço), conferindo-lhes sentido.”
 
Por meio de Contos da minha terra, O Piauí, tal qual o representa Garcia, passará a ser definitivamente mais valorizado, mais reconhecido e, principalmente mais amado por cada leitor que se aventurar pelas páginas desta obra.
 
Se o texto literário é, como explicou o teórico da literatura Rogel Samuel, “a mediação pela qual nos compreendemos a nós mesmos”, podemos categoricamente afirmar que temos motivos suficientes para dizer: após a leitura de Contos da minha terra, de José Ribamar Garcia, o Piauí e os piauienses não são mais os mesmos.
 
Em Contos da minha terra, de José Ribamar Garcia, o Piauí e os piauienses são grandes, como verdadeiramente são. Como os sonhos de cada um de nós.
 
 
 
Referencias:
 
BRANDÃO, Luiz Alberto & OLIVEIRA, Silvana Pessoa de. Sujeito, tempo e o espaço ficcionais. São Paulo: Martins Fontes, 2001.
 
CANDAU, Joel. Memória e identidade. São Paulo: Contexto, 2012.
 
CASTELLS, Manuel. O poder da identidade. Tradução Klauss Brandini Gerhardt. 2.ed. São Paulo: Paz e Terra, 2000.
 
GARCIA, José Ribamar. Contos da minha terra. Teresina: Nova Aliança, 2012.
 
SAMUEL, Rogel. Como curtir o livro - o que é teolit ? Rio de Janeiro: Marco Zero, 1986.
Texto lido por ocasião da lançamento de Contos da minha terra, de José Ribamar Garcia, em 27.10.2012, na Livraria Entrelivros, em Teresina-PI. Na foto de Péricles Mendel (cidadeverde.com), o escritor Ribamar Garcia e o apresentador da obra, diretor de Entretextos, Dílson Lages Monteiro.